Saber e filosofar

Como Kant mostrou com as antinomias da razão, a Ciência nunca se rematará numa solução conclusa dos problemas últimos da realidade, pois a existência de soluções antinómicas é possível por se não dar uma só solução necessária e evidente; e por outro lado, cada descobrimento científico novo suscita sempre problemas novos, o que implica que as explicações científicas sejam sempre relativas a uma dada situação de conhecimentos.

Saber e filosofar não são, pois, o mesmo, mas não sendo o mesmo não quer isto dizer que divirjam radicalmente. A razão é uma e sempre a mesma na sua estrutura e no seu discorrer lógico, e, como acabamos de ver, o saber e o filosofar têm entre si conexões, quanto mais não seja pelo facto do saber se não fundamentar a si mesmo e dos resultados científicos poderem ser tomados como ponto de partida de problemas que nem sempre se podem resolver com a metodologia estritamente científica. Divergem, porém, no ponto de vista em que se colocam, na problemática, no teor dos resultados e no próprio ideal da teorização. Notemos brevemente as diferenças mais ostensivas que apresentam.              

O saber científico é universalmente válido, pressupõe a consciência impessoal e dês-subjectivada, isto é, a consciência em geral, assenta em factos patentes e provas unânimes, e embora as verdades em que se             concretiza se possam apresentar como provisórias, elas integram-se num movimento progressivo, isto é, efectivam-se por adições sucessivas, seja em extensão, profundidade ou simplificação; o filosofar, pelo contrário, conduz a resultados que são sempre discutíveis, exprime a atividade de uma mente ou de uma consciência profundamente individualizada, o seu ponto de partida não é o mesmo para todos, a sua marcha não é uma só caminhada para a solução dos mesmos problemas e os seus objectos deslocam-se, tomam formas diversas e são substituídos ao longo da História. Basta reparar nas actuais correntes existencialistas, cujo denominador comum é a consideração do existir como objecto da Filosofia, o que as separa radicalmente da Ciência e do sistematismo universalista do racionalismo, intrinsecamente incapaz de apreender o que há de irredutivelmente pessoal na existência.

Os conhecimentos científicos são exatos e indubitáveis e constituem a Ciência; os juízos filosóficos, por seu turno, não alcançam unanimidade, podem persuadir e até convencer mas não arrebatam o assentimento universal e produzem um tipo de conhecimento que pode chamar-se sapiencial.

O saber científico exprime-se por linguagem unívoca e na medida do possível universal, enquanto o filosofar carece frequentemente de criar vocabulário próprio, consentindo o emprego de imagens, de alegorias e até de mitos, o que é incompatível com o rigor inerente ao discurso científico.

Em resumo, o saber científico é um saber que é ou vem a ser um saber de todos, isto é, um saber em que têm de coincidir observadores diferentes, sendo, portanto, um saber verificável ou demonstrável com exactidão; o filosofar, pelo contrário, é sempre caracteristicamente pessoal, isto é, nunca deixa de ser o filosofar de alguém, a ponto de se distinguirem mais facilmente as diversas correntes filosóficas pela referência ao seu instaurador platonismo, aristotelismo, tomismo, cartesianismo, kantismo, etc. —, do que pela problemática, pelo método ou pelas soluções.

A subjectivação inerente ao filosofar não quer dizer que os resultados do filosofar exprimam tão somente o talento ou a capacidade de quem filosofa. Se assim fosse, o filosofar confundir-se-ia com a criação artística, mas distingue-se quanto mais não seja pelo facto do filósofo não filosofar como quer e pode, ouvindo somente o apelo da sua fantasia ou do seu ideal, mas como é racionalmente constrangido a filosofar coerentemente com o saber que possui, a experiência humana que alcançou, os ditames da consciência, as situações e circunstâncias em que lhe é dado viver e pensar, assim como o teor da problemática que o ocupa. Se a imaginação e a fantasia do artista podem considerar-se livres, o discorrer do filosofar nunca o pode ser, porque é racionalmente constrangido a equacionar-se com o ser e com as relações de coisas que lhe são independentes e se lhe impõem e resistem com a rigidez imperativa com que os dados des-subjectivados da observação, da experimentação ou do cálculo exato se impõem e resistem à mente do homem de Ciência.

Não se filosofa sem primeiramente se estabelecer e fundar o objecto sobre que se pretende filosofar, isto é, sem se determinar a hipoticidade ou a constante do complexo sobre que vai incidir o discorrer do filosofar. Platão e Aristóteles são os mestres geniais desta arte de estabelecer objectos à “ciência que procuramos”, mas não basta estabelecer objectos, pois o que importa é a apreensão das relações que eles mantêm com a consciência que teoriza e de que dão lição sempre viva Descartes e Kant.

No saber científico dá-se o trânsito da opinião para o conhecimento objetivo, visto o sábio dizer o que a coisa é e como é para ele e para todos, enquanto no filosofar nos encontramos sempre com a concepção pessoal do filósofo acerca do objecto do seu próprio filosofar. No saber, a coisa é dada; no filosofar, o objecto é elaborado. Por isso, o sábio não indaga previamente os pressupostos do saber, confiando plenamente no apoio que lhe dá o método impessoal que aplica e no assentimento a que ele conduz quando convenientemente aplicado. Para levar a cabo a sua tarefa, não carece de saber como se constituiu a ciência que cultiva, e embora lhe seja indispensável fixar e delimitar o que se propõe investigar, basta-lhe normalmente uma ideia geral da coisa a que o seu assunto pertence ou de que faz parte e a aplicação conscienciosa do método adequado.

Nada disto é possível no filosofar autêntico. É, que o filosofar nasce e nutre-se vitalmente de problemas e de aporias, cuja descoberta, desenvolução e esclarecimento se produzem inteiramente na consciência reflexiva de urna alma solitária. Supõe sempre o diálogo, pelo menos o da razão insatisfeita consigo própria, mas ao contrário do saber, cujas indagações precisas e restritas se podem repartir em parcelas e distribuir por colaboradores, o filosofar é por excelência empreendimento de tarefa e de responsabilidade estritamente individual, para a qual a cooperação alheia está em relação análoga à do préstimo de dados positivos para a ideação do arquitecto.

Há, sem dúvida, um conjunto de problemas fundamentais e constantes, que transcendem as sucessivas situações históricas e posições individuais, o que, aliás, não impede que estas lhes gravem a peculiaridade do seu vinco intelectual ou estimativo. A História filosófica não é mesmo pensável sem a existência de uma problemática transpessoal que evite o extravio do seu objecto no labirinto emaranhado e dispersivo do acontecer filosófico, mas isto nada tem que ver com a circunstância irremovível da Filosofia nunca se oferecer como fruto maduro e sempre exigir implacavelmente que dela “andemos à procura”, para empregar a admirável expressão com que Aristóteles lhe alude no alfa maiúsculo (c. 2) da Metafísica. É a consciência reflexiva do filósofo que descobre os problemas, levanta as aporias, e procura o método mais adequado para as esclarecer e superar. Na quase totalidade, o estabelecimento dos problemas e das aporias não é inteiramente original, pois com fundamento se pode dizer que devemos aos génios de Platão e Aristóteles a proposição de quase toda a problemática que os séculos ulteriores tiveram e têm por intrinsecamente filosófica. Apresentam-se com diversa vestidura, com novas conexões e, por vezes, com soluções originais, mas na essência não pode falar-se de um progresso filosófico como se fala de um progresso científico. Por isso, todos os filósofos conservam sempre algo de actualidade e a História da Filosofia não é, como a História da Ciência, um cemitério de ideias, tornando-se o seu estudo indispensável ao aprendiz de filósofo pela pensabilidade que dimana e lhe é imanente.


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