Introdução à metafísica de Aristóteles

Nada existe na Natureza, ainda mesmo o menos valioso e mais desprezível, que não encerre no seu seio algo de maravilhoso; aquele cujos olhos o descobrem com deleitoso assombro é irmão em espírito de Aristóteles.

WERNER JAEGER

O obra filosófica e científica de Aristóteles constitui uma das criações exemplares do génio helénico. Pela vastidão enciclopédica dos conhecimentos, condensa o saber coetâneo e pela inventiva da própria capacidade, fundou novos saberes; pela multiplicidade das concepções originais, assinala a fecundidade sem par de uma mentalidade portentosa, que levou à luz da inteligência, o esteio do método, a largueza de vistas e a profundidade do estudo e da análise aos mais diversos objectos e assuntos do mundo natural, do mundo civil e do mundo psicológico e lógico; e pela influência no desenvolvimento cultural de gregos, de alexandrinos, de siríacos, de árabes, de judeus e de cristãos europeus, instituiu com a lição dos seus livros a aula mais vasta e frequentada de todos os tempos e de toda a Humanidade.

De Aristóteles, por antonomásia o Filósofo, disse Latino Coelho, com acerto de juízo e majestade de estilo, que “é o talento mais fecundo e eminente de toda a Antiguidade. Nenhum homem teve como ele esta rara e perigosa proeminência de reger e encadear durante séculos o pensamento científico das duas raças principais, de cuja atividade veio a nascer a moderna civilização. Nenhum espírito profano, por mais alto e luminoso, gozou como Aristóteles este assinalado privilégio de que as suas ideias se venerassem como dogmas, e de que o seu nome fosse tido por sinónimo da Ciência. A energia do seu talento vibrou até aos nossos dias em ondas de luz intelectual. Mas a idolatria pelo seu sistema, estancando nos espíritos as fontes do livre exame, e reduzindo a interpretações e comentários sobre a letra do grande mestre toda a fecúndia espiritual da Idade Média, foi o mais lastimoso impedimento a que mais temporã e diligente acordasse para saudar a Natureza a moderna investigação”...

Tão dilatada e contínua influência resultou da vastidão do legado de Aristóteles e da coerência da sua concepção da Ciência.

Antes de outrem, e de maneira que Kant ainda considerou como que definitiva, determinou o Organon, sob o ponto de vista formal, as categorias e formas do raciocínio exato e da inferência científica, e fundou a análise lógico-gramatical, de capital importância para o exame crítico da expressão do pensamento, pelo que a mossa do tempo não gastou nem desfigurou a sua Lógica, e, noutros planos da atividade espiritual, a sua Retórica e a sua Poética. Foi o primeiro que formulou uma concepção do Mundo em estreita conexão com os resultados da Ciência coetânea e coerente na hierarquia lógica dos elementos que a integravam; a sua atitude mental foi de severa exigência racional, a sua metódica não se desviou dos problemas a que se aplicava, e o seu vocabulário foi variado, adequado, claro, encontrando-se na base de grande parte do léxico filosófico que empregamos.

Demais, a estas razões veio juntar-se a coerência com que expôs a concepção da Ciência como teoria das relações recíprocas dos seres e a consistência que lhe deu, ao baseá-la num imenso saber, que ia da Astronomia à Política, da Física à Biologia, da Psicologia à Ética, da Lógica à Poética.

Daí, a conexão estreita da sua Filosofia com a Ciência e a estrutura racional das suas explicações do Universo perceptível e pensável, sem o recurso a mitos e a alegorias; e porque a sua concepção da Ciência se articulou em sistema, foi levado a uma concepção total do Mundo, definitiva, sem progresso nem retrocesso, onde não há lugar para a emergência do novo ou para uma evolução criadora, e cuja estrutura fixista e hierárquica como que obriga a que ela seja admitida ou repudiada em bloco.

Por esta última feição se compreende o destino histórico do aristotelismo, que, por um lado, facilitou a estabilidade de um corpo de doutrinas de saber coerente, com a correlativa oposição a todas as inovações, e por outro exigiu que a Ciência e a Filosofia que o quisessem apear carecessem de fundar-se numa interpretação da realidade perceptível e pensável que lhe fosse polarmente oposta. Por isso, sem esquecer a legião aguerrida dos renascentistas, cujo pensamento se orientou, no geral, em sentido mais ou menos hostil ao legado do Estagirita, os mais eficientes demolidores da ciência aristotélica da Natureza foram Copérnico, Galileu, Newton e Lavoisier, como Descartes, Hobbes e, sobretudo, Kant o foram da teorização ontológica e explicativa do filósofo da Metafísica.

A partir de Boécio (circa 480-525), que ambicionou proporcionar ao mundo latino o conhecimento da obra aristotélica e conciliar sinteticamente a filosofia do Estagirita com a de Platão, jamais deixou de estar presente ao mundo ocidental o imenso pecúlio de conhecimentos, de concepções e de interpretações do fundador do Liceu, assinalando um passo decisivo na evolução da nossa cultura ocidental a conciliação do pensamento teológico cristão, produzida na Idade Média , com a metafísica de Aristóteles.

As multíplices composições do vastíssimo Corpus alcançaram a estimação dos doutos e dos amantes do saber, mas nem todas exerceram a mesma influenciação doutrinal nem gozam na actualidade do mesmo apreço. De modo geral, pode dizer-se que os escritos relativos à Física, ao Mundo celeste e sublunar, e à Biologia, têm hoje o interesse retrospectivo que votamos aos marcos ultrapassados da História da Ciência. Não assim os escritos lógicos e propriamente filosóficos, de permanente actualidade pelo seu objecto acrónico e atópico e, sobretudo, pela problematicidade da atitude mental e pelo potencial pedagógico de reflexibilidade, de explicação e de sistematização que encerram.

Povo algum, que de antigo afeiçoasse a mente às normas do pensar lógico e nutrisse a alma da equidade do Direito e da doutrina do Evangelho, se eximiu à filosofia aristotélica, e até deve dizer-se que as vicissitudes da influência do aristotelismo tecem de algum modo, e em grande parte, a história do pensamento nos países em que desabrochou e tem florescido a civilização ocidental. O que é verdade geral nestes países é-o em especial, e acentuadamente, em Portugal, cujos grandes nomes da cultura filosófica, de Pedro Hispano a Silvestre Pinheiro Ferreira, passando pelo extraordinário Aristóteles Conimbricense, Pedro da Fonseca, ligaram a reflexão própria à do autor da Metafísica e do Organon, e cujos anseios de renovação intelectual, como o eclectismo pedagógico de Verney e o empirismo mitigado da segunda metade do século XVIII, somente se esclarecem cabalmente quando considerados como reacção contra a metafísica substancialista de Aristóteles, contra a feição disputante que a Escolástica dera às teorias do Organon, e contra a concepção hilemórfica como explicação da realidade natural.

O conhecimento da filosofia aristotélica é, pois, um elemento indispensável à compreensão da evolução mental da civilização a que pertencemos, mas o seu valor não é 'meramente veicular e subsidiário. Criação original, fecunda e normativa, tem o valor atópico e acrónico inerente às sistematizações que se tornam singulares pela atitude mental donde brotam, pelo método com que são construídas, pela problemática a que respondem e pelas soluções que apresentam, as quais podem não ser conhecidas por quem conscienciosa e reflectidamente pense os mesmos problemas a que elas respeitam.


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