Introdução à metafísica de Aristóteles

Cumpre, pois, atentar separadamente nestes dois pontos, ou sejam, respectivamente, o grau de conhecimento que os filósofos pré-aristotélicos alcançaram acerca da explicabilidade pelas causas e o valor que deve atribuir-se às suas concepções. O primeiro ponto é essencialmente indicativo; o segundo, crítico.

Em rigor, estes filósofos somente alcançaram como que o pressentimento, mais ou menos certeiro, de que a explicabilidade não era possível sem a existência de alguma ou de algumas destas quatro causas, mas não foram concordes no conceito que delas tiveram.

Com efeito, pelo que respeita à causa material, admitiram uns que o princípio material era uno, e outros que ele era múltiplo, não faltando ainda quem o concebesse como corpóreo e, contrariamente, como incorpóreo.

Filósofos houve que somente alcançaram esta causa material; outros, porém, pressentiram a causa eficiente, designadamente Empedoeles e Anaxágoras —, aquele, ao admitir que o “donde é o princípio do movimento” provém de duas forças cósmicas, o Amor e a Discórdia, este, em o situar na Inteligência (Nous).

Quanto à causa formal, ou quididade, Aristóteles não hesitou em afirmar que ninguém havia atingido com clareza o respectivo conceito. O único que dele se aproximou foi Platão, com a teoria das Ideias, visto considerar as Ideias como quididade das coisas, analogamente ao Uno que dá às Ideias a respectiva essência.

Finalmente, relativamente à causa final, os que dela tiveram noção referem-se-lhe sem explicitarem o pensamento e sem lhe indicarem a origem. Assim, Empédocles e Anaxágoras, ao indicarem o Amor e a Inteligência como causas, pensaram esta causalidade como Bem e não propriamente como fim, de sorte que ao mesmo tempo dizem e desdizem que o Bem é causa, pois a consideram “não absolutamente, mas por acidente”.

Indicadas as noções que os filósofos pré-aristotélicos enunciaram acerca da teoria causal, atentemos agora nas objecções de Aristóteles.

A juízo do Estagirita, a concepção da causa material que os filósofos da Jónia postulam limita-se exclusivamente aos corpos materiais, omitindo em consequência os princípios dos seres incorpóreos, e desconhece as causas eficiente e formal. Além disto, estabelecem impensadamente como princípio fundamental e originário um destes três elementos -- a água, o ar ou o fogo —, sem notarem que os quatro elementos se geram mutuamente, nascendo uns dos outros, quer por união, quer por desunião —, o que evidentemente impossibilita a relação de anterioridade e de posterioridade, implícita na noção de substância fundamental e originária.

A teoria de Empédocles não só se não furta a estas objecções senão que deixa por explicar a mudança de estado dos corpos naturais; e a de Anaxágoras comete o absurdo de dizer que todas as coisas estiveram primitivamente misturadas, embora tivesse tido o mérito de estabelecer, por um lado, a existência da unidade e da simplicidade da Inteligência, e por outro, a multidão infinita dos elementos, em termos que preludiam concepções posteriormente formuladas.

Nenhum destes filósofos se elevou à concepção da existência de seres imateriais, ou por outras palavras, distinguiu os seres sensíveis, isto é, os corpos fisicamente tangíveis, dos seres não-sensíveis, isto é, os seres não perceptíveis pelos sentidos.

O descobrimento destes seres não-corpóreos foi feito por Pitágoras e por Platão, mantendo-o e continuando-o as escolas que eles fundaram. As concepções de um e de outro assinalam um progresso notável, mas não estão isentas de graves dificuldades.

Com efeito, no que respeita à concepção do número, cuja essência não é apreendida pelos sentidos, os Pitagóricos servem-se do respectivo conceito para explicar a Natureza, isto é, pretendem explicar a realidade física mediante a existência de seres que não têm existencialidade física intuível pelos sentidos. Ora, sendo assim, como é possível passar-se do finito e do infinito, do par e do ímpar, para o movimento, ou mais explicitamente, para a geração e corrupção dos seres, para o que é pesado e para o que é leve?

Os números explicam a grandeza e o que na Natureza pertence à ordem da quantidade, mas não são causa de movimento; e além disto, como é possível que os números que os Pitagóricos consideram causas das coisas sejam os mesmos, e não outros que os que formam o Cosmos?

Para obviar a esta dificuldade, Platão distinguiu o número sensível, que é o número que se incorpora ao mundo real, do número inteligível ou ideal, que é o número propriamente dotado de causalidade. A distinção conduz-nos à teoria platónica das Ideias, que, como acima dissemos, é uma concepção que assenta na existência de seres materiais, que são os corpos, e na de seres imateriais, que são as Ideias, nas quais funda a essência do Ser e o objecto da Ciência.

Teoria original e complexa, de uma complexidade tão inextricável que quase roça pelo mistério, tem dado ensejo às mais dispares influências e juízos, desde o sentido transcendente, que enlevou o génio de Santo Agostinho e abonou o doutrinarismo místico, até à significação epistemológica do neo-kantianismo Paul Natorp, que nela reconheceu o princípio fundamental precursor do idealismo da Crítica da Razão Pura. O poder de reflexibilidade que ela contém assegura4he valor permanentemente formativo, além de ser capital para o estudo da génese da metafísica aristotélica, porquanto foi contra a teoria das Ideias que, por assim dizer, se constituiu o pensamento próprio de Aristóteles.

Não é de admirar, por isto, que este se lhe refira em diversos passos da sua vastíssima obra, mas como cumpre ao objetivo da presente introdução, devemos limitar a análise ao livro Alfa maiúsculo, em cujo âmbito — e só nele — nos situaremos, isto é, sem ter em vista os escritos de Platão e a totalidade das referências aristotélicas à teoria das Ideias.

Por esta razão, e atendendo ainda à comodidade expositiva, consideraremos fundamentalmente dois pontos: os argumentos justificativos da onticidade das Ideias segundo o Alfa maiúsculo, e as objecções críticas que Aristóteles lhes dirigiu neste mesmo livro. Comecemos por aqueles.

Como acima dissemos, a teoria platónica das Ideias exprime o intento de conferir à Ciência um fundamento inteligível que a exima à perpétua instabilidade e mutação do fluir da experiência sensível. Coerente com esta exigência lógica, o objecto da Ciência carece de ser universal, determinado e imutável; pelo que Platão o identificou com o Universal inteligível e estabeleceu a separação completa entre a essência ou forma que cada Ideia exprime e os seres sensíveis que dela participam, de sorte que as Ideias são concebidas como seres transcendentes ao mundo sensível, com existência própria e mais real que os seres concretos, porque é pela realidade das Ideias que se explica a realidade dos seres particulares da experiência sensível.

O primeiro argumento, na ordem por que Aristóteles os indica e no valor intrínseco, assenta nesta exigência lógica da Ciência, dado que a Ciência não tem por objecto coisas particulares mas o constante e imutável, que é dado precisamente pelas Ideias.


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