O segundo argumento procede da necessidade lógica de “admitir a unidade na multiplicidade”. Significam estas palavras, que são as de Aristóteles (hic., p. 51), que tem de existir e subsistir separadamente o que há de comum a muitos indivíduos semelhantes, como, por exemplo, aos indivíduos humanos o terem de comum a Hominidade, isto é, a forma de Homem, e que o que há de comum não perece quando cada um dos indivíduos se extingue. Ora a Ideia é precisamente a expressão inteligível desta “unidade na multiplicidade”.
O terceiro argumento tem por fundamento a persistência no pensamento das representações de coisas que pereceram, ou, como diz Aristóteles (hic., p. 51) “pensamos qualquer coisa mesmo depois de corrupta”. Equivale o raciocínio a dizer que quando se pensa uma essência inteligível, como por exemplo a Ideia de Homem, se pensa em algo existente em si e não em algo que exista somente nos indivíduos a que chamamos homens, dado que o perecimento dos indivíduos não implica que cesse o pensar-se a ideia de Homem; pelo que a ideia de Homem, como essência inteligível, é distinta dos seres humanos.
São estes os argumentos que no Alfa maiúsculo Aristóteles atribui aos Platónicos, acentuando, porém, que eles apresentavam outros “raciocínios mais rigorosos”, cujo teor não expõe mas cujas consequências indica, a saber, a existência de ideias de relativos e a incongruência lógica da existência do “terceiro homem”, que no lugar próprio referimos (hic., p. 52, nota).
Segundo Robin, estes argumentos basear-se-iam na concepção da Ideia como modelo, em ordem a explicar a existência de atributos comuns, e no conceito de participação, segundo o qual as coisas que são semelhantes entre si sê-lo-iam por participarem à Ideia que as torna semelhantes.
Conhecida a fundamentação da teoria, cumpre agora atentar nas objecções de Aristóteles, pensadas com o propósito de provar que ela não esclarece coerentemente o problema “do princípio e da causa”, que é o abjecto da “ciência a adquirir> (hic., p. 15), ou como também diz, com admirável sentido das dificuldades, da ciência de que andamos à procura (hic., p. 8).
Quando Aristóteles escreveu o Alfa maiúsculo, é de crer que, como acima dissemos, não tivesse rompido completamente com o círculo de filósofos mais ou menos fiéis à doutrina de Platão. Considerava-se ainda, de certo modo, senão platónico, pelo menos platonizante, mas isto não significa que aceitasse integralmente a teoria das Ideias, ou por outras palavras, a concepção ontológica e causal que ela exprimia.
Para bem situar a crítica de Aristóteles, convém atentar principalmente nas duas consequências que da teoria platónica resultavam: a Ciência não tem por objecto o particular sensível, ou por outras palavras, a factualidade captada imediatamente pelas sensações não constitui ontologicamente o objecto do Saber; e o geral que é objecto da Ciência é constituído pelas Ideias, isto é, o objecto da Ciência e a essência do Ser enquanto Ser somente são pensáveis desde que se admita a existência de essências universais com existência própria, quer em relação às coisas corpóreas e sensíveis.
Na linha da tradição socrática, firmado no princípio de que somente no universal se dá a Ciência, Aristóteles não contestou a primeira destas consequências, excogitando até uma teoria original acerca da oposição do particular e do universal em ordem a estabelecer o trânsito do conhecimento sensível ao conhecimento universal, mas contestou a segunda com insistentes e penetrantes objecções.
Fundamentalmente, temos diante de nós o problema de saber se é logicamente possível separar-se de uma coisa sensível a Ideia, isto é, a essência formal ou inteligível dessa mesma coisa. Aristóteles ocupou-se reiteradamente deste assunto, mas ao objetivo da presente introdução somente importa considerar a refutação que ele expôs no capítulo nono do Alfa maiúsculo. Nestas páginas, concisas e densas de dificuldades como quase todas as que constituem os livros metafísicos, Aristóteles pretende mostrar que a teoria das Ideias não resolve cabalmente o problema do objecto da “ciência a adquirir”, que é o “do princípio e da causa”.
Com Platão, na sequência do ensino socrático, Aristóteles teve por indubitável que a Ciência não é possível sem a existência de conceitos universais, mas contra o ensino do seu Mestre não admitiu que os conceitos universais, essências inteligíveis ou Ideias, fossem explicação bastante da realidade sensível e da ciência da Natureza.
São muitas as objecções que lhes despede, pelo que convém agrupá-las na seguinte esquematização: a teoria das Ideias é inútil como explicação; a onticidade atribuída às Ideias não é admissível; a teoria não explica o devir no mundo físico. Atentemos separadamente em cada um destes apartados:
A primeira objecção é, por assim dizer, preliminar, e consiste em arguir os platónicos de estabelecerem a existência de tantas Ideias quantas as espécies de seres sensíveis. Equivale a objecção a considerar o âmbito do mundo das Ideias, e a dizer que os platónicos duplicaram o número de seres, procedendo corno quem tivesse dificuldade em fazer urna conta e pensando que os números existentes não eram bastantes, aumentasse a numeração para mais facilmente a fazer. Por outras palavras: para que admitir uma duplicação de essências inteligíveis que nada resolve, visto o duplicado ser sinónimo da coisa que se duplica?
A teoria das Ideias, porém, não só não resolve a dificuldade da “ciência que indagamos” senão que os argumentos com que os platónicos procuram demonstrar a onticidade das Ideias, isto é, a existência própria e distinta das formas e essências inteligíveis, não são aceitáveis.
Com efeito, o primeiro argumento que, como vimos, se baseia na necessidade da existência do Universal como fundamento da Ciência, não autoriza que a este se atribua onticidade própria e distinta. Aristóteles não desenvolve no capítulo nono do Alfa maiúsculo a objecção, mas pelo seguimento dos seus raciocínios e por outros passos dos seus escritos, pode dizer-se que ela consiste em opor à concepção platónica a concepção de que o Universal inerente à fundamentação da Ciência não pode ser existentivado, como o não podem ser as qualidades e as relações.
Ao segundo argumento, baseado na necessidade lógica de admitir a existência da “unidade na multiplicidade”, objecta Aristóteles que ele não implica a existência distinta das Ideias, porquanto se assim fosse seria necessário admitir também a existência distinta “das negações”. Por outras palavras: se a ideia de Homem-em-si tem de existir com existência própria, por ser a essência una atribuível à multiplicidade dos indivíduos humanos, a ideia de Não-Homem-em-si também tem de existir nas mesmas condições, por ser uma essência una que não é atribuível a uma 'multiplicidade de indivíduos semelhantes.
O terceiro argumento a favor da existência separada das Ideias baseia-se na persistência mnésica de representações de coisas que desapareceram: donde a implicação da existência de coisas fora do espírito que as representa. Corno é óbvio, Aristóteles não contesta a realidade psicológica das representações da memória, mas a sua objecção de que temos representação dos “corruptíveis” mostra que tinha em mente dizer que a coerência lógica obrigava a admitir não só a existência das Ideias que exprimem o uno na multiplicidade, mas também a existência da Ideia de cada coisa singular, concreta e perecível.