Introdução à metafísica de Aristóteles

Tais são as objecções de Aristóteles à concepção das Ideias como realidades com existência própria e distinta dos seres sensíveis. A crítica de Aristóteles não se limitou, porém, no Alfa maiúsculo, à refutação da onticidade das Ideias, porquanto criticou também a relação que os platónicos estabeleciam entre as Ideias e os seres sensíveis. E o terceiro aspecto da crítica aristotélica que cumpre notar, porque se a refutação que acabamos de expor resumidamente implica a afirmação de que não é possível separar dos seres sensíveis as Essências inteligíveis, Ideias ou Quididades — o que constitui como que a propedêutica da doutrina pessoal de Aristóteles —, o aspecto que agora vamos considerar implica a consideração do desacerto a que conduz a explicação da realidade dos seres sensíveis mediante a teoria das Ideias.

Se bem interpretamos as páginas do capítulo nono do Alfa maiúsculo, cujo pensamento e afirmações têm sido coordenados de maneira diversa, como pode ver-se por exemplo, nas profundas e extensas monografias de Rabin e de Cherniss, Aristóteles discrimina (hic., pp. 53-54) três explicações diferentes, embora afins: as Ideias são causas; as Ideias são paradigmas ou exemplares; as Ideias são participáveis e as coisas sensíveis existem por participação às Ideias.

A primeira, ou seja a acção causal das Ideias, é expressamente reportada por Aristóteles (hic., p. 56) ao Fédon, de Platão, no passo em que afirma que as Ideias são causa tanto do ser como do devir , devir, isto é, do estar sendo.

Poderia, com efeito, pensar-se que o Branco é causa “da composição da coisa branca”, e deste parecer foram Anaxágoras, Eudoxo e outros, isto é, a causalidade exercer-se-ia pela inserção ou, talvez mais propriamente, pela mistura da Essência inteligível à matéria informe.

Esta argumentação, à qual está subjacente a teoria do Nous e das homoemérias de Anaxágoras, diz Aristóteles que «é muito frágil, pois é fácil opor-lhe objeções inúmeras e por absurdo», que aliás não explicitou. O emprego da palavra «absurdo», no entanto, como que descobre a objeção fundamental que teria em mente, levando a crer que fosse a contradição existente entre a ação causal das Ideias, que tinha de se exprimir concretamente no fluir incessante do mundo físico, e o carácter transcendente que lhes é próprio, e que confere onticidade às Ideias somente no mundo inteligível. Consequentemente, as Ideias não podem ser causas, quer se considerem como puras essências inteligíveis, quer como números-ideias, como adiante veremos, por não terem imanência causal.

A conceção das Ideias como exemplares também não é explicação satisfatória.

Com efeito, em primeiro lugar, ela implica a existência de um agente que contemple a Ideia-modelo e a insira na realidade material.

Em segundo lugar, o ser concreto exigiria várias Ideias-modelos, como por exemplo, um indivíduo humano, cuja individuação pressuporia as Ideias de Animal, de Bípede, «e, ao mesmo tempo, de Homem-em-si», isto é, a necessidade lógica da coexistência de muitas Ideias-modelos autónomas, o que importa a destruição da conceção. Por outras palavras: sendo Pedro um ser animal, bípede e hominal, a sua individuação pressuporia as Ideias de Animal, de Bípede e de Homem-em-si, cuja singularidade ôntica de cada uma destas Ideias torna inexplicável que Pedro seja concretamente um ente uno e não plural.

Em terceiro lugar, considerando as relações de subordinação das espécies ao género a que pertencem, seria forçoso admitir que as próprias Ideias também se constituíam por Ideias-modelos, o que conduziria ao paradoxo de as Ideias poderem ser simultaneamente modelos e imagens.

Finalmente, a conceção implica a negação da transcendência das Ideias, dado serem inseparáveis a existência da substância «e aquilo de que ela é substância».

A explicação mediante a «participação”das Ideias também não é satisfatória, equivalendo «a pronunciar palavras ocas e fazer metáforas poéticas» (hic., p. 55).

Com efeito, a participação, considerada em si mesma, não pressupõe uma causa atuante que lhe seja inerente, por forma que os seres que participam das Ideias não são gerados, se não «houver um motor». Consequentemente, a causa formal, inerente à ideia, não basta para explicar a existência dos seres sensíveis, pelo que se impõe a procura da causalidade que a explique fora das Ideias.

Nesta objeção, como aliás noutras, a crítica brota da própria filosofia de Aristóteles, visto nela censurar a separação da Forma e da Matéria e a omissão de uma explicação do trânsito da Potência ao Ato, mas considerada ainda em si mesma a teoria encerra intrinsecamente como que uma contradição.

É que as Ideias, segundo a teoria platónica, participam como essências genéricas. Ora a «unidade na multiplicidade» não se dá somente em relação aos géneros, mas também em relação a «muitas outras coisas», como «uma casa, por exemplo, ou um anel, sem que delas se afirme que há espécie»; por consequência, contrariamente à teoria, é forçoso admitir a participação em relação a coisas de que não existem essências genéricas ou específicas. Quer dizer: se não existem Ideias de objetos, como a casa, o anel, etc., e se estes objetos existem, a participação não é uma explicação universal, visto darem-se objetos cuja existência não carece das Ideias.

Além de ser uma explicação «oca», a participação é, pois, uma conceção contrária à própria teoria das Ideias, por implicar a dissolução da substancialidade das Ideias.

Da exposição que acabámos de fazer, com ser resumida e breve, resulta que a causalidade não é explicada satisfatoriamente pela teoria das Ideias, e para remate do assunto, deve ainda acentuar-se que a conceção dos Números-ideais também a não explica. Deixando para outro lugar mais adequado o complexo problema da relação das Ideias e dos Números na conceção platónica, baste agora notar que para Aristóteles os Números-ideais também não podem ser causa dos sensíveis (hic., pp. 56-57).

E não o são, já porque os seres sensíveis não são números, isto é, tal número seria Cálias, tal outro Sócrates, já porque se não descobre uma razão pela qual um número seria causa de outro número que lhe fosse igual, pois o facto de se dizer que uns números são eternos não é explicação causal.

Em conclusão, e à maneira de resumo: a imobilidade é um dos caracteres essenciais das Ideias, e tanto bastaria para mostrar que elas não podem ser causas e, consequentemente, explicar a existência sensível e o devir físico. A teoria das Ideias não fundamenta, pois, um objeto consistente à «ciência que procuramos», o qual cumpre procurar alhures, «não tem qualquer relação com aquilo que dissemos ser os princípios das Ciências», nem tão-pouco com a causa final, e porque o movimento não é inerente às Ideias nem estas constituem o princípio dele, a conceção platónica impossibilita logicamente o estudo da Natureza, que é o teatro da causalidade eficiente.


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