Introdução à metafísica de Aristóteles

Considere-se como fonte de informação, de assimilação ou de contraposição, a filosofia de Aristóteles constitui um elemento capital e indispensável na formação do espírito filosófico e sobretudo no ensinamento de que o filósofo deve desatender o sortilégio das palavras e lhe cumpre evitar o extravio por caminhos que se afastem do pensar lógico e da conexão da reflexão com os dados científicos. Como nas páginas de Platão, de Descartes, de Espinosa, de Kant, de Hegel, de Husserl, aprende-se na Metafísica de Aristóteles que fazer Filosofia é tão difícil como fazer Ciência, e que filosofar com ignorância ou com imposturice é to fácil como fazer literatura de mau gosto.

Não é, nem será, pois, baldado, o contato com o Pensador que até à Renascença foi tido como encarnação viva e definitiva da Filosofia e que depois daquela viragem da nossa cultura se tornou, para uns, o instaurador de algumas bases da Filosofia perene, e para outros, o antípoda do pensamento moderno, designadamente de Descartes e de Kant.

A Metafísica é, por excelência, a obra filosófica de Aristóteles, que talvez dela tivesse feito como que o centro de convergência do seu imenso labor e da sua portentosa reflexão; e porque o seu labor e a sua reflexão sempre tiveram por alvo a explicação do objecto sobre que se exerciam e jamais deixaram de ter em conta os esforços e os resultados dos que o precederam, a Metafísica é como que a interpretação global do saber e o remate da especulação filosófica de Tales a Platão.

São sem conto, a bem dizer, as dúvidas e perplexidades que o texto desta obra suscita, como é prova extrínseca a série extensa dos seus comentadores. Teofrasto, amigo e discípulo dilecto de Aristóteles e seu imediato sucessor na direcção do Liceu, foi o primeiro, e após o grande sábio, cujo livro sobre os Caracteres La Bruyère divulgou em elegante tradução, bastará apenas referir o nome dos seguintes intérpretes: Alexandre de Afrodísia (circa 200), que a posteridade designou de Segundo Aristóteles, Averrois (1126-1198), por antonomásia o Comentador, S. Tomás de Aquino (1225-1274), Pedro da Fonseca (1548-1597), o Aristóteles Conimbricense, e Bonitz, falecido no século passado.

À crítica textual, que verdadeiramente surgiu com a erudição humanista da Renascença, e aos comentários analíticos, vieram juntar-se as interpretações doutrinais, designadamente desde as proibições eclesiásticas no princípio do século XIII (1210 e 1215), passando pelas polémicas quinhentistas e pelas Discussiones Peripateticae (1583), de Francisco Patrizzi (1529-1597), até aos nossos dias, com os trabalhos de Werner Jaeger e de E. Bignone.

Tanto basta para mostrar que não é fácil falar de Aristóteles, e muito menos a nós, portugueses, pela hercúlea responsabilidade que Pedro da Fonseca nos legou; por isso, nas páginas que se seguem e mas brevíssimas notas à tradução resumiremos tão somente o que mais importa ao conhecimento geral desta obra e à compreensão de alguns passos do seu texto, tendo apenas em vista a divulgação do essencial.

Destinaremos a cada livro uma introdução própria, e por consequência estas páginas de introdução geral situam-se no plano das generalidades relativas à autenticidade, estrutura e teor dos catorze livros que compõem a Metafísica.

O título de Metafísica, pelo qual esta obra é conhecida, não pertence propriamente a Aristóteles, que, como é presumível, intitularia de “Filosofia primeira” o conjunto destes estudos, que é aliás o título preferido pelo comentador Alexandre de Afrodísia, sem embargo de também empregar o de “Metafísica”.

Empregou-o primeiramente Nicolau de Damasco, mas o verdadeiro criador do afortunado título foi, ao que parece, Andrónico de Rodes, undécimo sucessor de Aristóteles na direcção do Liceu (78-47 a. C.), a quem se deve a colação e revisão dos escritos que estão na base do actual Corpus aristotélico, e que designou de metafísica “os livros que [nas tábuas] sucedem aos da física” — tà metà tà phusiká. A origem do título é, pois, tópica, isto é, relativa ao lugar que os livros que designamos de metafísicos ocupavam no corpus, após os livros físicos, adquirindo posteriormente o sentido actual, de livros que se ocupam do que vai além do objecto da Física, entendendo por tal a descrição e explicação puramente científica dos fenómenos da Natureza. Sob o ponto de vista verbal, o sentido adquirido não é, pois, de Aristóteles, mas é-o sob o ponto de vista doutrinal, porque a mutação semântica de livros metafísicos para livros de Metafísica passou a designar a ciência do ser enquanto ser, ou, no excelente dizer de Pedro da Fonseca, o que não consta de matéria nem em matéria se resolve e é atribuível a coisas diversas.

Pela natureza do assunto, essencialmente abstrato, no qual utilizou a crítica dos sistemas filosóficos que se sucederam a Tales em ordem ao estabelecimento de uma teoria do ser e da causa primeira como primeiro motor e forma perfeita, pela concisão do pensamento e pela própria significação do vocabulário, a Metafísica veio a tornar-se a obra aristotélica de mais densas dificuldades e de mais variados comentários.

A perda de escritos como o Sobre Aristóteles, de Hermipo de Esmirna, que Diógenes Laércio ainda utilizou na redacção da biografia de Aristóteles na Vida dos Filósofos, de comentários, como os de Eudoro, de Aspásio e de Simplício, e de catálogos, como a bibliografia ordenada dos escritos aristotélicos de Adrasto de Afrodísia, e a disparidade relativa de alguns informes que até nós chegaram, deixam envoltos os livros metafísicos em obscuridades e dúvidas.

Quatro pontos cumpre considerar: se todos os livros são da autoria de Aristóteles, e, no caso afirmativo, se os publicou em vida, quantos escreveu e por que ordem.

a) A primeira dúvida, ou seja o problema da autenticidade, radica no facto de Diógenes Laércio, que, como é mais verosímil, viveu pela segunda metade do século terceiro da nossa era, não ter referido a Metafísica no seu catálogo das obras de Aristóteles. A dúvida, porém, não parece fundada, porquanto Alexandre de Afrodísia, anterior a Diógenes Laércio e que Septímio Severo nomeou professor de filosofia peripatética circa 198 e 211 da nossa era, conheceu esta obra, da qual é um dos mais famosos comentadores, e cuja influência se fez sentir, especialmente na Renascença, após Pedro Pomponazzi (1462-1525), que no Tractatus de immortalitate animae (1616) opôs a interpretação alexandrista de Aristóteles à de Averrois, e com os escritos de Simão Porta (t 1555) e a tradução latina de Juan Gines de Sepúlveda (†1572).

Apesar dos cinco séculos que separam Aristóteles de Alexandre de Afrodísia e da incerteza acerca da autenticidade dos seus comentários a alguns dos livros da Metafísica, é indiscutível que o testemunho do notável comentador, conjugado com outros factos designadamente as referências de Aristóteles aos escritos que intitularia de “Filosofia primeira”, a que já aludimos, responde cabalmente à dúvida fundada no silêncio de Diógenes Laércio.

Deixando de lado a interpretação deste silêncio, isto é, se ele é indício de desconhecimento ou, pelo contrário, se os livros que compõem a Metafísica foram indicados, pelo menos em parte e com títulos próprios, no catálogo de Diógenes Laércio, passamos ao segundo ponto, ou seja o da época em que se tornou público o conhecimento da Metafísica.    


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