b) Tudo concorre para indicar que os livros metafísicos não alcançaram na Antiguidade, porventura até ao estabelecimento do Império Romano, o apreço de outros escritos do vastíssimo corpus aristotélico. Seja ou não exato o parecer, que se não baseia propriamente em factos positivos mas na carência de informes, os livros metafísicos pertencem ao grupo de escritos aristotélicos que de antigo se designam de «exotéricos”.
Distinguiram os antigos os escritos “exotéricos” dos “acroamáticos”, entendendo por “exotéricos” os de feição didáctica, de frase concisa e desataviada e de pensamento condensado, e por “acroamáticos” os de feição literária, não isenta até de intenção oratória. Os primeiros destinar-se-iam aos cursos, os segundos, ao público, cujo estilo cuidado Cícero louvou no De natura deo rum (II, XXXVII, 95) pela “torrente de ouro da sua eloquência”.
Os escritos deste último teor não chegaram até nós, pois salvo a Constituição de Atenas, descoberta vai para cinquenta anos, cujo estilo denota a preocupação do escritor, todas as demais obras do corpus aristotélico foram pensadas e escritas para uso pessoal ou docente. Daí, a concisão, a densidade e, por vezes a obscuridade do pensamento, próprias das páginas que não são destinadas ao público, e, sobretudo, o vinco didáctico, tão acentuado que não parece desprovida de fundamento a conjectura dos livros metafísicos terem sido compostos para uso de lições e conterem, porventura, apontamentos de alunos.
Em reforço desta opinião acode o informe de Asclépio, num passo do seu comentário à Metafísica, segundo o qual Aristóteles teria enviado estes livros a Eudemo, o discípulo a quem dirigiu uma das Éticas, que os não considerara em estado de serem divulgados. A divulgação seria, portanto, póstuma, dizendo ainda Asclépio que depois da morte de Eudemo o texto teve acrescentamentos em ordem a preencher lacunas, os quais foram colhidos noutras obras de Aristóteles.
Qualquer que seja o valor intrínseco desta notícia, ela confirma a autenticidade dos livros metafísicos e está de acordo com a circunstância, unanimemente reconhecida, deles não apresentarem a unidade dos outros escritos saídos da pena ou do ditado de Aristóteles. Daí, o problema da autenticidade em relação a cada um dos catorze livros, o qual pode formular-se já a respeito de todo o texto de cada um, já a respeito de certos trechos ou períodos. A exposição sumária deste assunto obrigaria a repetições, visto termos de aludir a este problema na introdução privativa de cada livro; por isso, passaremos ao terceiro ponto, ou seja a ordem dos livros que constituem a Metafísica.
c) No contexto tradicional, a Metafísica é constituída por catorze livros não coordenados entre si com perfeita sequência, os quais se discriminam pela ordem do alfabeto grego ou pela ordem dos números, mas o estabelecimento do número total e a ordem por que se sucedem não estão isentas de dificuldades.
Com efeito, quanto ao número, a computação grega, que segue a ordem do alfabeto, enumera treze livros, aos quais se aditou um livro suplementar, o alfa minúsculo (a), que corresponde ao II no cômputo numérico; e Hesíquio, no seu catálogo dos escritos de Aristóteles, refere a Metafísica com dez livros, donde o problema de saber que livros omitiu. W. D. Ross estabelece por mais verosímil, e num caso com segurança, que foram os seguintes: o II (alfa minúsculo), que é propriamente uma introdução à Física ou ainda à filosofia teorética, e que uma tradição antiga atribui a Pasicles de Rodes, sobrinho de Eudemo, discípulo de Aristóteles e cujo nome, como já dissemos, figura no título de uma das Éticas de Aristóteles (Ética a Eudemo); o V (Delta), que aliás Hesíquio refere com o título Sobre os diversos sentidos das palavras; o XI (Kappa), cuja parte primeira é resumo dos livros III (Beta), IV (Gamma) e VI (Épsilon), que é a parte que Alexandre de Afrodísia comentou, e cuja segunda parte, a partir do cap. 8, é uma compilação não autêntica da Física; e o XII (Lambda), que é como que um tratado independente acerca da causa primeira.
Segundo estes dados, teríamos, assim, de considerar que a Metafísica é constituída propriamente por um núcleo fundamental, cujo número de livros varia no cômputo de alguns exegetas, ao qual se teriam adicionado alguns livros, como que marginalmente.
A este problema, de marcha dificultosa, acresce outro, bem mais complexo e difícil pela compenetração estreitíssima da Filosofia e da Filologia: a cronologia e agrupamento dos livros metafísicos.
De maneira geral, e sucintamente, defrontam-se duas concepções diferentes do pensamento de Aristóteles: a sistemática e a genética.
Segundo a concepção sistemática, que é a tradicional, os pensamentos expressos na Metafísica são parcelas ou membros de um sistema que Aristóteles havia elaborado como fundamentação e síntese do saber, ou, pelo menos, o esforço do historiador e do intérprete deve orientar-se no sentido da reconstrução do sistema.
Das várias manifestações desta maneira de ver, referiremos tão somente os pareceres de Pedro da Fonseca, de Karl Ludwig Michelet, de F. Ravaisson e de O. Hamelin.
Para o Aristóteles Conimbricense, a Metafísica compreende o prefácio e o tratado. O prefácio é constituído pelos dois capítulos iniciais do livro I (Alfa maiúsculo) nos quais se louva esta ciência.
O tratado começa no cap. III do livro I (A) e prossegue até final do último livro, que é o livro XIV (N). A parecer de Fonseca, que como ninguém levou longe esta concepção, o sistema desenvolve-se da seguinte maneira, ou, por outras palavras, os catorze livros ocupam-se sucessivamente: da refutação das opiniões dos antigos acerca das causas (I, A); do modo de se investigar a verdade (II,I) ; das questões a resolver (III, B); do sujeito da metafísica (IV,I´); das dúvidas e problemas metafísicos (V, A); do ente em geral (VI, E); do ente per se e real (VII, z); da matéria e da forma (VIII, II); da potência e do ato (IX, 0); do uno (X, 1); de várias noções já anteriormente expostas na Metafísica e na Física (liv. XI, (E) e p.a La do XII, A); da causa universal (final do liv. XIII, m); da crítica da teoria platónica das Ideias (liv. XIII, M, e XIV, N).
Fonseca não tomou em conta os elementos históricos. A sua repartição é o resultado de uma concepção sistemática da metafísica aristotélica em ordem à metafísica da Escola; por isso, sem esquecer a larga quota que pertence à interpretação tomista, esta repartição em função do objecto dos catorze livros é particularmente importante para o estudo da génese da problemática ontológica da “Segunda Escolástica”, tanto nas Quaestiones de Pedro da Fonseca, como nas Disputationes Metaphysicae, de Francisco Suárez.
A divisão de Michelet, no Examen critique de touvrage d'Aristote intitulé Métaphysique (1835), não é tão esquemática como a de Fonseca. A seu ver, a Metafísica divide-se em três partes.
A primeira é uma introdução, na qual Aristóteles dá a definição de Filosofia primeira e estabelece que esta é ciência dos princípios. Compreende os livros I (A), II (a) e III (B).