Deixando de lado este assunto, bem como a exposição sumária do estado actual das investigações acerca do que há de unitário e de fragmentário nos livros metafísicos, importa acima de tudo ao objetivo da presente notícia preliminar a índole da atitude filosófica de Aristóteles tal como ela se exprime na Metafísica e a concepção que ele teve acerca do objecto da filosofia primeira, ou Metafísica.
Para Aristóteles, a Metafísica é uma ciência diaporemática, isto é, um saber constituído intrinsecamente por dificuldades ou aporias. Em vez de resultados, e portanto de soluções dogmáticas, ela nutre-se vitalmente de interrogações, de dúvidas, de problemas, de sorte que a primeira tarefa do filósofo consiste em problematizar, isto é, em se inteirar cabalmente do teor dos problemas propostos ou a propor. Não é, por isso, casual que o livro das Aporias (liv. IV, 1') seja como que o centro nuclear da problemática mais ou menos explicitado das catorze aporias, isto é, dificuldades ou problemas, a respeito dos quais os filósofos ante-aristotélicos tinham formulado doutrinas diversas das do Estagirita.
O trabalho filosófico começa, portanto, com a apreensão clara da problematicidade em causa e nutre-se vitalmente do esforço que se orienta para o respectivo esclarecimento com coerência lógica e consistência material, dado que a Filosofia somente se descobre a quem a indaga com sinceridade escrupulosa, sem ardil nem venda nos olhos, e sempre se esconde a quem a procura colher, como fruto maduro, nos resultados da inquirição de outrem.
Sendo a raiz da Filosofia, a problematicidade não significa que ela seja para Aristóteles a própria essência da Filosofia. Problematiza-se filosoficamente para se alcançarem resultados mais amplos e seguros, e não pelo puro prazer de problematizar, isto é, de levantar dificuldades onde outros encontram resposta pronta. Daí, a diferença que o separa do seu mestre.
Platão, com efeito, representa como ninguém o “espírito de inquirição”, isto é, a insatisfação incessante em face dos resultados, alheios ou próprios. Para o fundador da Academia, filosofar, é pensar em voz alta, e pensar em voz alta não é monologar, mas dialogar, incansavelmente com os outros e consigo próprio, na apreensão de novas dificuldades e na revisão do que por momentos se julgou adquirido e definitivo. Aristóteles, ao contrário do seu mestre, representa, ou talvez mais propriamente, pensou sob a influição do “espírito de sistema”. O seu alvo era a aquisição do saber exato, por forma que a problematicidade representa apenas um momento, embora fundamental e capital, da marcha que conduz ao resultado. É, o resultado que importa e é para o alcançar que a mente problematiza e raciocina.
Por isso, ao contrário de Platão, que não legou propriamente um sistema, mas antes um conjunto de teorias que se sucedem em torno de temas dominantes, da obra de Aristóteles é possível extrair um sistema -- prova-o a Escolástica e provam-no os historiadores da escola de Zeller e os expositores de que Hamelin foi modelo —, mesmo que se admita que os livros metafísicos não são propriamente a expressão de um sistema mas a tentativa para o alcançar.
Do que vimos dizendo se colige que, para Aristóteles, como aliás para todos os pensadores verdadeiramente originais e criadores, filosofar é problematizar em ordem a resultados coerentes e consistentes; cumpre agora mostrar que, a seu ver, o filosofar que dá origem à Filosofia mais digna de apreço é o que incide sobre a problematização acerca do ser e da causa primeira, ou por outras palavras, que a Filosofia é essencialmente Metafísica, isto é, conhecimento do que está ou vai além da experiência sensível, ou seja em termos que Aristóteles tornou densos de significado, a teoria geral do ser, dos princípios e das causas.
A primeira coisa que logo ressalta dos parágrafos iniciais do livro I (A) é o propósito de indagar o conceito e o conteúdo do objecto do saber mais digno de apreço. Como cumpria, Aristóteles conduz sempre a indagação no puro plano racional, mas não está isenta de dificuldades a determinação do objecto do saber metafísico, que aliás designa com nomes diversos. Deixando de lado o problema cronológico destas designações n, importa ao nosso ponto de vista a determinação do conceito aristotélico de Metafísica.
O primeiro sentido que a Metafísica apresenta, cuja designação aliás não parece ter sido a mais antiga no vocabulário aristotélico, é o do saber metafísico como sabedoria. É uma noção ampla, pois assenta no conceito do saber universal dos princípios supremos da realidade sensível e não-sensível. E a concepção que se encontra no livro I (hic., pp. 8-15) e nos livros III e X (caps. 1-2), e nela se acusa o vinco platónico, especialmente na concepção maternatizante das ideias-números, que foi a última expressão que Platão deu à sua ontologia. Nesta concepção, a sabedoria, ou filosofia, é tida por fundamento da explicabilidade científica, visto alcançar-se a explicação completa quando se conhecem as quatro causas do ser: material, formal, eficiente e final. Saber, é conhecer pelas causas e, portanto, o saber das causas é o saber metafísico e o fundamento da Ciência.
O segundo sentido, indicado no capítulo I do livro II (a), considera a Filosofia “ciência da verdade”. Quer dizer, o saber metafísico é um saber teórico, que investiga a verdade por si mesma, sem ter em vista a acção, que é o sentido próprio das ciências práticas, ou como pensa Bonitz: somente pelas causas sabemos as coisas, sendo que as causas são mais verdadeiras que os seus efeitos. Neste sentido, o objecto do saber metafísico é o conhecimento teorético das coisas que são supremamente verdadeiras.
O terceiro sentido, indicado em outros passos da Metafísica, designadamente no princípio do livro IV (1') e no livro XI (x), 3, estabelece que o saber do filósofo é a ciência do ser enquanto ser, considerado universalmente e não em qualquer das suas determinações. Esta concepção, que a análise dos vários textos que se lhe referem torna difícil, complexa e sumamente importante e na qual sobressaem Oggioni e Werner Jaeger, propõe, entre outros quesitos, o de se esclarecer se Aristóteles considerou este saber como ciência do ser formal ou material e se a determinação das propriedades essenciais do ser é feita somente sob o ponto de vista da realidade ou também sob o ponto de vista gnoseológico, ou seja, com base filológica, ontologia —, isto é, como escreveu Hamelin, se a ciência do ser enquanto ser “tende já fortemente em Aristóteles a passar ao idealismo completo, para o qual um ser é a síntese de um objecto ou de um sujeito” . Dois pontos não obstante são seguros: a pluralidade de sentidos da noção de ser não afecta a unidade da respectiva noção”e a identificação ulterior, com base neste sentido, da Metafísica com a Ontologia, cuja fortuna histórica é imensa, designadamente na Escolástica medieval e nos peripatéticos peninsulares da Escolástica renovada dos séculos XVI-XVII, notadamente Pedro da Fonseca e Francisco Suárez.
Finalmente, o quarto sentido, que identifica o saber metafísico com a “filosofia primeira”, concebe por “filosofia primeira” a ciência da realidade transcendente, isto é, do supra-sensível. É a concepção que aparece no diálogo Peri philosophias, nos dois primeiros livros da Física, o segundo dos quais é citado no I da Metafísica, e nos livros XIII (caps. 9-10) e XIV. Nestes textos, de modo geral, estabelece, ainda sob influência platónica, a despeito da crítica que faz à teoria das Ideías, que a Física tem por objecto os princípios do ser sensível e a Filosofia primeira, o supra-sensível. Filosofia e Teologia identificam-se, isto é, o saber metafísico ontológico é ao mesmo tempo saber teológico --- no que Jaeger vê uma contradição —, e esta identificação tem como que a contraprova na subdivisão que no livro IV (E) I, faz das ciências teoréticas: Matemáticas, Física e Teologia.