Introdução à metafísica de Aristóteles

Destas brevíssimas noções se colige como nota dominante que a Metafísica é a ciência dos princípios e do ser enquanto ser.

Como ciência dos princípios ocupa-se do que está na base do pensamento demonstrativo, designadamente os axiomas e os princípios da contradição e do terceiro excluído; e como ciência do ser enquanto tal, ocupa-se disto mesmo, mas considerado sob o ponto de vista ontológico. Entre os dois objectos não há diferença estrutural, porque os fundamentos do pensar lógico são ao mesmo tempo expressão da essência do ser enquanto ser, pelo que podem ser estudados, como Aristóteles mostrou, sob o ponto de vista lógico, nos Segundos Analíticos, e sob o ponto de vista ontológico, no livro IV (r) da Metafísica.

Em conclusão, pode dizer-se que a Ontologia constitui o objecto capital da Metafísica, pois é pela diversidade da resposta à pergunta sobre o que é o ser que uns filósofos são monistas e outros pluralistas, e destes, uns admitem a pluralidade limitada em número, e outros, a pluralidade ilimitada.

Tais são as notícias mais gerais, de ordem histórico-filosófica, que podem servir de introdução geral à leitura desta obra; cumpre agora reparar separadamente nos temas e problemas de cada um dos catorze livros da Metafísica, o que iremos fazer concisamente e tão somente em ordem à compreensão da respectiva leitura.

INTRODUÇÃO À LEITURA DO LIVRO

ALFA MAIÚSCULO (1)

Num passo do comentário de Asclépio de Tales à Metafísica de Aristóteles diz-se que se atribuía o livro Alta maiúsculo (I) a Pasicles, irmão de Eudemo e discípulo de Aristóteles. João Filopão, no comentário à mesma obra, transmite a substância deste informe, dizendo porém que se tratava do Alfa minúsoulo, que é o livro II, e entre os árabes correu uma tradição que o atribuía a Teofrasto.

A crítica interna, porém, corroborada pela tradição constante, dissipou a dúvida que estes dizeres podiam suscitar, por forma que a autenticidade deste livro é tida por firme.

O segundo problema preliminar respeita à cronologia. Pode ser considerado sob dois aspectos diferentes: o da situação temporal que o Alfa maiúsculo ocupa em relação aos demais livros que constituem a Metafísica, e o da época da atividade literária de Aristóteles a que pertence.

Sob o primeiro ponto de vista, Hamelin, para só citar uma única autoridade, resumindo as investigações de Brandis e de Bonitz, foi de parecer que a exposição da teoria platónica das Ideias e dos Números, que Aristóteles fez com numerosos traços de semelhança nos livros Alfa maiúsculo (I), Mu (XIII) e Nu (XIV), inculca que a redacção do Alfa maiúsculo (I) é mais “madura”, pelo que lhe seria posterior.

Ao tempo em que o insigne filósofo e historiador da Filosofia defendeu esta cronologia ela já não era recebida por grande parte dos críticos, e actualmente foi como que preterida pela crítica de Werner Jaeger, em cujo juízo o livro Alfa maiúsculo (I) se deve considerar esboceto da crítica da teoria platónica das Ideias e da doutrina dos Números de Espeusipo e de Xenócrates, as quais foram ulteriormente expostas com mais desenvolvimento no livro Mu (XIII).

A seu ver, e com acerto como tudo indica, o confronto do capítulo IX do Alfa maiúsculo (I) com os capítulos IV-V do Mu (XIII) mostra que as duas críticas à teoria platónica das Ideias são, no geral, coincidentes, e que a redacção do capítulo IX do Alfa maiúsculo (I) é anterior à do Mu (XIII), visto Aristóteles se referir naquele aos platónicos na primeira pessoa do plural (demonstramos, admitimos), o que não ocorre na redacção dos capítulos (IV-V) do livro Mu (XIII); consequentemente, Aristóteles considerava-se ainda ligado à comunidade platónica na época em que escreveu o livro Alfa maiúsculo (I), o que já se não verifica na época em que escreveu o livro Mu (XIII).

O insigne historiador de Aristóteles e da Paidea helénica não hesitou até em afirmar que “a forma original da crítica [à teoria das Ideias, no Alfa maiúsculo (I)] pressupõe um grupo de filósofos platónicos, para os quais Aristóteles resume uma vez mais e em rápida revista todas as objecções à doutrina do Mestre já falecido, que haviam ocupado a Academia no decurso dos anos, a fim de concluir pela necessidade de uma reorganização completa do platonismo sobre a base daquelas críticas”.

A consideração cronológica relativa ao segundo ponto de vista, ou seja a da época da atividade literária de Aristóteles a que o Alfa maiúsculo pertence, não tem por si qualquer facto indubitável que a permita estabelecer. A correlação com a conclusão anterior levou, contudo, Werner Jaeger a estabelecer com verosimilhança que os livros Alfa maiúsculo (I), Beta (III) e Gamma (IV) pertencem à parte mais antiga da Metafísica, e que Aristóteles os teria escrito pouco depois de 348-7, após a morte de Platão, provavelmente em Assos.

Apontadas sumariamente algumas das opiniões relativas à autenticidade e à cronologia do Alfa maiúsculo (I), atentemos agora nalguns dos pensamentos nele expressos, em ordem à respectiva compreensão histórica e filosófica.

No conjunto dos livros metafísicos, este livro é claro testemunho da multiplicidade de dotes e de recursos do génio de Aristóteles, que nele com igual capacidade se mostra a um tempo historiador e filósofo, observador e dialéctico.

A variedade de assuntos que nele se expõem ou referem permite que o consideremos sob pontos de vista diferentes, notadamente como tratado histórico da teoria do ser na filosofia anterior a Aristóteles e como introdução histórico-filosófica à teoria do saber.

A feição histórica é, pois, a característica saliente e, por assim dizer, óbvia, e até se deve acrescentar que o Alfa maiúsculo é a única História do pensamento helénico, de Tales aos platónicos, que até nós chegou com feição sistemática. A esta luz, é de capital importância, apesar de Aristóteles não haver historiado as correntes filosóficas que o precederam com objectividade histórica, isto é, com sentido de temporalidade e de conexão histórico-cultural, tanto mais que inseriu na exposição das concepções alheias as suas próprias concepções, como adiante veremos, designadamente a propósito da exposição histórico-crítica que ele faz da teoria platónica das Ideias.

Compreende-se. É que o objetivo de Aristóteles no Alfa maiúsculo consistiu fundamentalmente em coordenar as opiniões dos filósofos que o precederam em função do número e da natureza dos princípios fundamentais da Ontologia e de extrair destas opiniões, por um lado, a justificação histórica da sua concepção das quatro causas, e por outro, o índice de um conjunto de dificuldades problemáticas acerca do ser enquanto ser. Como ele próprio declara (hic., p. 8), o seu propósito teve por fim descobrir os temas e problemas da “ciência de que andamos à procura”, ou seja a Filosofia primeira, ou Metafísica; por isso, pôs a nu os erros e paralogismos de cada uma das doutrinas e fez sobressair as verdades que de todas se colhem e se podem considerar como adquiridas.


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