Introdução à metafísica de Aristóteles

A circunstância de Aristóteles visar diretamente o que tem por verdade filosófica e não propriamente o que foi a verdade histórica consente, como acima dissemos, que a narração do Alfa maiúsculo possa ser considerada, e consequentemente narrada, sob os pontos de vista da teoria do ser e da teoria do saber.

O primeiro ponto de vista é admitido, implícita ou explicitamente, pelo comum dos historiadores da Filosofia grega, e do segundo deu mostra Averrois, no Comentário, ao dividir este livro I em quatro summas, sendo a primeira como que o proémio, a segunda, a narraçao das opiniões dos filósofos acerca das causas e dos princípios (caps. 2-7), a terceira, a crítica da concepção da existência de princípios corpóreos das coisas naturais e da existência de princípios incorpóreos (caps. 8-9) e a última, como que a recapitulação geral (cap. 10).

Temos, porém, por mais conveniente o critério expositivo que atenda fundamentalmente aos temas versados e ao respectivo sentido e ordem. Por isso, salientaremos os seguintes pontos: conceito de Filosofia como Sabedoria (caps. 1-2); justificação histórica de que o objecto capital da Filosofia até ao tempo de Aristóteles consistiu na indagação dos princípios e causas do ser (caps. 3-7); e revisão crítica das teorias relativas aos princípios e causas do ser até então apresentadas (caps. 8-10).

a) Conceito de Filosofia corno Sabedoria (caps. 1-2).

Duas coisas cumpre distinguir na reflexão filosófica: o impulso que a excita e o objecto que a ocupa.

O impulso nasce e nutre-se da admiração, isto é, do sentimento de curiosidade perante o ignoto. “Todos os homens têm, por natureza, desejos de conhecer”, é a frase inicial do livro I da Metafísica, mas o pensamento 'que impregna de sentido esta frase, ou seja a curiosidade de devassar o desconhecido e que Platão assinalou em certo passo do Teeteto, não precisa nem define rigorosamente a índole da reflexão filosófica.

Confere, sem dúvida, à Filosofia e à Ciência autonomia e propriedade, porque dizer que elas nascem e se nutrem da admiração equivale a dizer que elas existem e subsistem por si e não como propedêutica ou veículo da Moral, como pensara Sócrates. A génese autonómica da Filosofia não constitui, porém, toda a especificação que lhe é própria, e que é dada principalmente pelo objecto e pela atitude da razão que o quer conhecer.

É que todo o ser vivente susceptível de receber sensações tem propensão para conhecer, mas da mera sensação passiva à Ciência fundada e demonstrada existe um caminho longo, no qual se podem distinguir marcos diversos, sucessivamente mais perfeitos no grau do conhecimento.

O primeiro é a mera sensação. Os animais que dela gozam possuem conhecimento, mas se carecem de memória são animais imperfeitos. Consequentemente, a memória estabelece um grau de distinção, podendo dizer-se que os animais que a possuem são mais perfeitos, como por exemplo as abelhas, que, no entanto, não podem ser domesticadas por carecerem de audição. Daqui resulta que os animais que além da sensação e da memória possuam a sensibilidade auditiva são já mais perfeitos, pois podem ser domesticados.

Com serem mais dotados, estes animais, contudo, não são em rigor perfeitos, porque a perfeição pressupõe a experiência, ou mais propriamente, o conhecimento experimental, isto é, o conhecimento que resulta da repetição dos casos fixados na memória e dos quais se tira uma regra prática.

O conhecimento experimental dá-se no homem, mas os graus do conhecimento verdadeiramente privativos do ser humano são a Arte e a Ciência, por implicarem o que não existe nos animais, a saber, o raciocínio ou discurso lógico.

A Arte consiste no conhecimento das regras práticas baseadas em princípios gerais. Quem possui a Arte, tem conhecimento de princípios gerais que aplica praticamente a casos particulares e este conhecimento origina-se na experiência, pois é da experiência de muitos casos particulares que resultam os princípios gerais. O conhecimento implícito na Arte é, pois, mais perfeito que o conhecimento implícito na mera experiência, pelo que reputamos mais capacitados os mestres de obra do que os simples operários.

O grau superior do conhecimento é atingido, porém, pela Ciência. É que o conhecimento inerente à Arte é um conhecimento de sentido prático, isto é, destinado à satisfação de necessidades materiais, e o conhecimento inerente à Ciência é um conhecimento que tem por objecto o puro saber desinteressado, isto é, o saber pelo saber, cujo fim está nele mesmo e não em qualquer aplicação.

Há assim, segundo Aristóteles, uma hierarquia na perfeição do conhecimento, desde o conhecimento sem memória dos insectos, passando sucessivamente pelo conhecimento com memória dos irracionais, pelo conhecimento com memória e raciocínio do homem de experiência imperfeita e pelo conhecimento racional pelas causas com fim prático, que dá lugar à Arte, isto é, às ciências práticas, até ao grau supremo, representado pelo conhecimento pelas causas sem finalidade prática, isto é, puramente desinteressado, e que dá lugar à Ciência pura, isto é, às ciências especulativas.

À perfeição do conhecimento corresponde naturalmente a perfeição do próprio saber, por forma que o saber mais perfeito é dado pelo saber especulativo, que se ocupa das causas supremas e dos princípios mais gerais. Quem sabe este saber sabe o saber mais difícil e sabe dar a razão das coisas. Pois bem: este saber é o saber do filósofo e a designação que Aristóteles lhe dá nos capítulos do Alfa maiúsculo que estamos resumindo é a de Sabedoria ou Filosofia.

Actualmente, é vulgar associar-se à palavra sabedoria o sentido prático inerente ao bom-senso natural enriquecido por longa e variada experiência da vida, e até não falta quem continue a verter nesta palavra a concepção ética da prudência (virtus) que os estóicos romanos lhe introduziram. Para Aristóteles, porém, ela é sinónimo da ciência por excelência, ou Filosofia, isto é, a ciência mais compreensiva, a mais difícil de atingir, pela universalidade do seu objecto e respectivo afastamento dos dados sensoriais, a mais precisa, pelo carácter abstrato, a mais instrutiva, a mais livre e independente e a de supremo ensinamento, por nela confluírem todas as ciências e dar a razão de ser e o destino de tudo o que existe.

Como todo o conhecimento, a Filosofia, ou Sabedoria, nasce da surpresa e da admiração, mas pela virtude do saber que lhe é próprio a surpresa dá lugar à compreensão. Quem a possui é filósofo, e ser filósofo neste sentido é atingir a compenetração da unidade dos saberes, conhecer as causas e a natureza do Universo, e ter clara noção dos princípios primeiros e últimos de tudo o que existe.

Assim entendida, a Sabedoria ou Filosofia tem por objecto e finalidade o saber puro e desinteressado e é a única ciência livre no conjunto de todas as ciências —, tal como o homem livre que somente existe para si próprio, enquanto que o escravo somente existe para proveito do seu dono.

Por esta feição, a adquisição da Sabedoria ou Filosofia mais parece dote divino que capacidade humana, pelo que poderia pensar-se que ela não está em proporção com os recursos limitados do espírito, que não é absolutamente independente.


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