O belo artigo de Joaquim de Carvalho provocou reações apaixonadas. Do Diário Liberal de 25 de Julho de 1933, Domingos Monteiro põe em causa a doutrina do artigo do Mestre da Universidade de Coimbra, considerando «absolutamente confuso» o conceito de liberalismo de Joaquim de Carvalho, «sem desprimor — escreve — para a sua magnífica inteligência». Aceitando que democracia e liberalismo sejam coisas diversas, faz o elogio daquela e repudia com indignação o liberalismo, responsável, segundo ele, de permitir todas as injustiças sociais. Joaquim de Carvalho responde a Domingos Monteiro e a dois dos seus então «compagnons de route», Manuel Anselmo e Mário de Castro, com seis primorosos artigos neste volume transcritos sob a epígrafe geral «Com a razão nas mãos».
É interessante verificar que Joaquim de Carvalho faz remontar ao ensinamento de Cristo a origem do liberalismo : «Veio Jesus e disse que se desse a César o que é de César e a Deus o que é de Deus e desde então foi possível a generosa atitude de espírito e de coração donde brota o liberalismo».
Mas a conceção liberal parte de uma sua filosofia que regula não só o exercício do poder, no respeito dos seus limites identificados com os direitos humanos, mas de um sentido ético das relações entre o Estado e o cidadão. «Quanto mais não fosse por exclusão, o liberalismo — sustenta o Mestre — é a única política de base filosófica generosa, criadora e fecunda, e não apenas por exclusão de partes, mas por fundamentos próprios». E depois de haver exposto largamente o seu pensamento, com exemplos e argumentos que vão do bom senso e da experiência dos povos até ao estabelecimento de uma teoria racional do Estado, Joaquim de Carvalho confessa-se : «O meu porto é a Democracia liberal».
Na sincera franqueza da sua profissão de fé política, pesava fortemente o que então ocorrera havia pouco na sociedade germânica : «O exemplo da Alemanha de Hitler, ou seja a morte da Democracia pelas urnas é terrivelmente elucidativo». Em seu entender, só uma conceção profundamente liberal do Estado podia impedir às Democracias de perpetrarem o seu próprio suicídio. E repete o que já por mais de uma vez tinha escrito : «teoricamente, Liberalismo e Democracia não são termos sinónimos. Exprimem e significam respostas diversas a quesitos diversos da consciência política — a democracia indicando quem deve mandar legitimamente e o liberalismo consistindo numa rede de defesa contra o poder de quem manda». E a sua conclusão, lapidarmente expressa, sem matizes nem ambiguidades, é assim formulada : «democracia ou império do sufrágio e igualdade perante o poder sem Liberalismo é despotismo puro».
Domingos Monteiro não ficou talvez convencido pela fulgurante argumentação do lente de Coimbra, mas a verdade é que não replicou. Pouco antes da sua morte confessou-nos que continuava a estar convencido de que o Liberalismo era uma fonte de males para o Estado democrático.
Em outros luminosos artigos, três pelo menos, com o título «Sobre a ideia de Estado total», dois dos quais integrados por uma «Digressão sobre a alma burguesa» e o terceiro intitulado «O senhorio do tempo e a civilização», Joaquim de Carvalho preconiza mais uma vez com força a sua ideia de liberal-democracia : «Como construção, o Estado democrático-liberal representa a mais alta expressão da inteligência política e dos mais delicados sentimentos da convivência e da dignidade humana». É nesse contexto que formula o elogio da «realidade burguesa» como «estado de espírito», garantindo ao cidadão uma segurança e uma estabilidade indispensáveis, porque — sublinha — «os regimes políticos e económicos não têm por fim dar a felicidade pessoal a ninguém».
A «Reflexão sobre a Universidade» é um artigo breve mas de uma candente atualidade. Reconhecendo embora que «a Universidade portuguesa tem acima de tudo de formar bons profissionais — bons médicos, bons juízes e advogados, bons pedagogos e bons farmacêuticos, etc. —, e em grau incomparavelmente menor e com estilo diverso, bons investigadores, bons biólogos, bons helenistas, etc.», o grande professor insurge-se contra «a peçonhenta verdade da carência de tempo livre», que está na origem da «burocratização do magistério».
Que não diria Joaquim de Carvalho se hoje pudesse ser testemunha, numa Universidade frequentada por muitos milhares de estudantes, do nivelamento cultural pela base de docentes totalmente incapazes, na sua maioria, de produzir ciência universal e conhecimento crítico inovador. A Universidade tem de ser uma escola de espírito livre, o que quer dizer de espírito crítico. E de renovação metodológica, com vista à génese do saber, à criação de um conhecimento metódico que é isso que pode chamar-se Ciência.
5. A «Reflexão sobre a Universidade», sendo uma digressão política, é também uma lição pedagógica. Representa, por isso mesmo, um trânsito lógico para o último capítulo deste volume, integrado pelo que chamamos «Esboço de uma História da Educação». É, repetimos, o canto de cisne ou o último estudo importante escrito pelo Mestre, que não teve tempo para o levar até ao fim.
Não vamos, por algumas razões óbvias, resumir o suco substancial deste valioso escrito. Sublinhemos apenas em que consiste o esquemático programa dos seus mais interessantes capítulos. Depois de uma breve introdução intitulada «Preliminares», abrangendo dois subcapítulos intitulados «Objeto e conceito de História da Educação» e «Valor subsidiário do estudo da educação nos povos primitivos e nas civilizações orientais», o ilustre autor estrutura deste modo a sua obra : Capítulo 1- A Educação na Grécia " (compreendendo o ideal homérico, a educação em Esparta, a educação em Atenas desde os Sofistas até Sócrates, Isócrates, Antístenes e Aristipo, Platão, Aristóteles e a educação grega no período helenístico); Capítulo II- A Educação em Roma (abarcando o estudo da educação primitiva romana, as inovações educativas de influência helénica, a educação durante o Império, a literatura romana de alcance histórico-pedagógico); Capítulo III - O Cristianismo e a constituição de novo ideal educativo e de novas instituições docentes (abraçando temas como o sentido do ideal educativo cristão, as primeiras instituições docentes cristãs, as conceções
pedagógicas de Clemente de Alexandria, de São Jerónimo e de Santo Agostinho); Capítulo IV- A Educação na Alta Idade Média (capítulo formado por breves estudos acerca das invasões dos Bárbaros e da ruma das instituições escolares romanas; as compilações didáticas dos séculos V e VI; a Igreja e as novas bases do ensino; Carlos Magno, a difusão do ensino como elemento de unificação religiosa e política, Alcuíno e Rabão Mauro; desenvolvimento do ensino eclesiástico secular; o ensino no século XII, disciplinas de estudo e método docente; a instituição da licentia docendi e o alargamento do ensino; a educação do cavaleiro); Capítulo V- A Educação na Baixa Idade Média (com o estudo das Universidades, significado e modalidade das origens; organização das Universidades medievais; método de ensino (escolástico) nas Universidades medievais; as corporações de ofícios e a preparação de artífices; o ensino particular; as escolas municipais; literatura pedagógica medieval); Capítulo VI - O Humanismo e a Educação (compreendendo uma análise da Renascença e as novas condições do ensino; o Humanismo e a conceção formativa das línguas clássicas, o método dos colóquios; educadores e tratadistas italianos de formação humanista; difusão do ensino das Humanidades nos países ocidentais; conceções pedagógicas de Rodolfo Agrícola, Erasmo, Vives, Rabelais e Montaigne); Capítulo VII - A Reforma protestante e o ensino. Atividades e conceções pedagógicas de Lutero, Melâncton, Trotzendorf e João Sturm; Capítulo VIII - A Contra-Reforma e a Educação. A Companhia de Jesus e o ensino preparatório.