Instituições de Cultura (séculos XIV-XVI)

A Universidade medieval portuguesa possuiu, como dissemos em estudo anterior, uma característica singular: a instabilidade. Ora em Lisboa, ora em Coimbra, não deixou nunca de ser a mesma escola, porque foi a organização corporativa e científica, e não o local, que lhe conferiu singularidade.

À data da morte de D. Fernando (1383), a Universidade encontrava-se situada em Lisboa, onde permaneceu até 1537. A trasladação para a capital (1377-1378) parece ter obedecido ao intento de uma reforma: «vendo e considerando», dizia D. Fernando no diploma de 3 de Julho de 1377, «que, se o nosso Estudo, que ora está na cidade de Coimbra, fosse mudado na cidade de Lisboa, que na nossa terra poderia haver mais letrados, que haveria se o dito Estudo na dita cidade de Coimbra estivesse [...]».

Com efeito, a deslocação do Estudo Geral foi seguida, como notámos, de um conjunto de medidas que o tornaram similar das Universidades estrangeiras, quer na organização e nos métodos de ensino, quer no reconhecimento do jus ubique docendi. D. Fernando inaugurara a era das reformas universitárias, cujo desenvolvimento e execução coube à dinastia de Avis, e desde logo, ao seu fundador. O primeiro ato de significação universitária do mestre de Avis, ainda Regedor e Defensor do reino, foi a confirmação, em 3 de Outubro de 1384, dos privilégios, constituições e ordenações da Universidade, a declaração de que esta permaneceria perpetuamente em Lisboa, a concessão aos doutores, licenciados e bacharéis em direito civil e canónico de poderem advogar sem licença régia, e, finalmente, a proibição, anteriormente estabelecida pela Universidade, de os bacharéis e estudantes ensinarem particularmente fora das aulas do Estudo, sob pena de multas e outras sanções. Tão solenes declarações têm levado alguns historiadores a conjeturar que os professores e estudantes da Universidade de Lisboa seguiram resolutamente, na hora incerta da luta, o partido do Mestre de Avis, que hasteava a causa da independência nacional; mas quaisquer que fossem os motivos que as determinaram, e não é possível isolá-los com segurança, a consequência é manifesta: a Universidade persistia como organismo autónomo e privilegiado.

Dentre estes privilégios um se destaca: o foro académico, cível e criminal. O que até então havia sido costume tacitamente aceite e porventura impreciso, tornou-se lei categórica pela carta régia de 4 de Maio de 1408, na qual D. João I, fixando o poder jurisdicional do conservador da Universidade, ordenava «a todallas Justiças, quaeesquer q sejam destes Regnos, que daqui emdiante nom conheçades de feito nenhilu crime nem çiuell de nenliú scollar q seja do corpo da dita universidade, mais que como forê achados em alg-üu malleficio, ou delles for dada querela ou denunciaçom, e forem presos per noso mandado em nossas prissões, ou vos forem demandados per o dito conservador, que logo os entreguedes ou mãdedes entregar ao dito sseu conservador, q hora he, ou pellos tempos adiante forem, que ouçã e desembargê, assi os ditos ffectos crimes como çivees, de quaees quer scollares, e os livre como achar q he dereito, dando nos fectos crimes appellaçam pera nos, e nos fectos çivees agravo; e se por vemtura algútis scollares teemdes presos, mandamos vos q emtreguedes ou mandedes emtregar logo pera o dicto conservador veer sseus ffectos, e os livrar com sseu dereyto, como dito he [...]» (apud Dr. António de Vasconcelos, Origem e evolução do foro académico privativo da antiga Universidade portuguesa).

Como no passado, os privilégios e foros universitários, essenciais para a vida e progresso da Universidade, encontravam a resistência das justiças reais, quando não do próprio conservador da Universidade. Os escolares, sobretudo, foram os mais queixosos, ora contra os almotacés, ora contra os conservadores, ora contra as limitações das suas regalias tradicionais, ora contra o pagamento das coletas aos lentes e ao bedel.

A reconstituição destes espólios, a despeito de nos transportar para uma estrutura de vida estudantil tão diversa da dos nossos dias, é no fundo história anedótica, na qual o encadeamento dos factos só alcança sedução quando a imaginação os anima e transfigura; por isso trocá-la-emos pela exposição objetiva da orgânica e do desenvolvimento científico da Universidade até à morte de D. João III.

Ao trasladar o Estudo para Lisboa, D. Fernando instalou-o numas casas, a que o vulgo chamava da moeda velha, no sítio da Pedreira. D. João I, talvez porque estas casas fossem acanhadas ou impróprias, doou-lhe em 1389 outras casas, no mesmo sítio. Não sabemos ao certo se esta doação determinou um novo alojamento em casas próximas, ou se foi apenas uma ampliação das instalações já existentes; porém, tudo leva a crer que a Universidade considerou a doação como ampliação, porque, tendo o rei doado a Mem Rodrigues de Vasconcelos, Mestre de Sant'Iago, umas casas no sítio da Pedreira, os estudantes obtiveram a revogação desta doação com o fundamento de que o Mestre de Sant'Iago não consentia que nelas se ensinasse. Embora os documentos não especifiquem as casas doadas ao Mestre, conclui-se que se tratava das casas onde D. Fernando instalara o Estudo, e nas quais se manteve até 1431, ano em que o infante D. Henrique lhe doou novas instalações, na freguesia de São Tomé.

Para além da ampliação do Estudo, curou o rei de prover aos seus recursos económicos e progressos científicos. As receitas universitárias haviam-se tornado exíguas, já porque D. Fernando aumentara as côngruas dos vigários das igrejas anexadas ao mantimento do Estudo, já pela depreciação das rendas, já pelo acréscimo de despesas com novo pessoal docente. Foi da Universidade que partiu a primeira proposta para o aumento de recursos, sugerindo uma Coleta lançada sobre os estudantes na proporção das possibilidades de cada um: os mais ricos pagariam vinte libras aos lentes de Leis e Cânones; os de fortuna média, dez libras, e os mais pobres, cinco libras. D. João I, a quem fora submetida esta proposta, julgou-a insuficiente, determinando, por carta de 6 de Fevereiro de 1392, que se duplicasse a contribuição proposta. Não bastou, porém, este expediente para sanar as receitas do Estudo, e por isso, poucos anos depois, resolveu D. João I solicitar do Pontífice a anexação à Universidade de uma igreja de cada diocese do reino.

O papa João XXIII deferiu a pretensão pela bula Dum attentae considerationis de 21 de Março de 1411, nomeando executor dela o prior de São Vicente de Fora, o qual transmitiu o encargo ao lente, doutor, ou estudante, que o Estudo elegesse. Recaiu a eleição em Gonçalo Martins, tesoureiro-mor de Silves, que nos termos da bula anexou igrejas de todas as dioceses, com exceção de Silves e Badajoz e uma igreja do padroado real, à escolha do rei, o qual primeiramente cedeu a de Santiago de Lisboa e posteriormente substituiu, a rogo da Universidade, por ser de escasso rendimento, pela de São Nicolau, de Lisboa também. A Universidade não entrou logo na posse destas igrejas, cuja renda era avaliada na referida bula de João XXIII à volta de quinhentas libras, e de algumas mesmo não chegou a cobrar receitas por lhe haver sido contestada a posse e fruição. Destas providências se depreende claramente o interesse pela instrução, e como poderia ser diversamente, se o Estado, ao ritmo da Nação, se reorganizava totalmente? No fundo, porém, ao ditá-las. D. João I não procedia espontaneamente: confirmava costumes e iniciativas académicas. E compreende-se.


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