Instituições de Cultura (séculos XIV-XVI)

o) Um capelão do Estudo. Ao amanhecer, «saindo o sol», cumpria-lhe dizer missa, diariamente, após a qual começavam logo as aulas dos lentes de Prima.          

Para concluir, resta-nos aludir aos préstitos que a Universidade de Lisboa celebrava anualmente, e nos quais se incorporavam todos os lentes e escolares.        

Os préstitos tinham lugar durante o ano lectivo, realizando-se nos seguintes dias:        

1) Em 25 de Novembro, na festa de Santa Catarina do Monte Sinai, indo à igreja de São Domingos, «ouvindo vésperas, missas e pregações».   

2) Em 6 e posteriormente em 5 de Dezembro, na festa de São Nicolau, à igreja da invocação deste santo. O lente de Filosofia natural pregava em português, para todos entenderem, «e quando for impedido por justa causa ofereça ao Conselho tal pessoa que seja de seu contentamento».              

3) Em 8 de Dezembro, na festa de Nossa Senhora da Conceição, à igreja deste nome, dos freires da Ordem Militar de Cristo. Este préstito foi estabelecido por D. Manuel, que para este fim concedeu quatro mil reais.

O préstito saía per modum universi, dizendo-se missa cantada e pregando o lente de Metafísica ou Filosofia moral, que recebia três mil reais. Dos mil reais restantes, D. Manuel estipulou que se dessem por ele «um cruzado de oferta à dita missa, se comprassem velas e incenso e o que ficar será para a arca do Estudo».

4) Em 25 de Dezembro na festa do Natal. Este préstito que fora estabelecido pelo infante D. Henrique em 1448 e corroborado no seu testamento em 1460, saía da igreja de São Julião para a do Convento do Salvador de religiosas dominicanas. Dizia a missa e pregava o lente de Prima de Teologia. Cada lente e estudante pagava dez reais para a arca e gastos da confraria, a qual para realizar este préstito, se fundara, segundo cremos, após a morte do infante. 

5) Em 7 de Março, na festa de São Tomás de Aquino, o Anjo das Escolas, indo à igreja de São Domingos.          

6) Em 25 de Março, na festa de Nossa Senhora da Anunciação, à igreja de Nossa Senhora da Graça. Foi estabelecido pelo infante D. Henrique, subsidiando-o a Universidade com cem reais, duas velas de uma libra e uma onça de oiro. Dizia a missa e pregava o lente de Prima de Teologia.             

Os préstitos dispunham-se «honesta e honradamente», «por modo de universidade». Era obrigatória a incorporação de todos os universitários, incluindo os antigos bacharéis que não fossem desembargadores, os quais se não justificassem a falta pagariam para a arca do Estudo três dobras de ouro. Os estudantes formavam «de dois em dois», quase sempre sob a direção dos lentes de Gramática e de Lógica, que levavam «suas varas vermelhas».

Nesta descrição, debuxada a traços largos, se vê que a Universidade manuelina conservara o semblante medieval. D. Manuel confirmara e robustecera até velhas tradições, e se fundadamente podemos pensar que o redator dos estatutos se socorrera das constituições da Universidade de Salamanca, o certo é que, acima de tudo, teve presente os regimentos e costumes que pouco a pouco foram modelando a vida interna do Estudo Geral fundado por D. Dinis. Além da criação de algumas cátedras, a inovação suprema destes estatutos, que serviram de base às reformas posteriores até ao marquês de Pombal e ecoam ainda nalgumas usanças da atual Universidade de Coimbra, encontra-se na afirmação expressa da autoridade real. Perante ela cessaram alguns privilégios, assim dos lentes como dos escolares, os quais a Universidade, até então autónoma, a si própria se outorgara ou havia alcançado dos reis. Daí alguns protestos, por parte sobretudo dos estudantes, protestos esses que se traduzem em reclamações contra os almoxarifes e juízes das alfândegas e portagens, pela aplicação das dízimas e portagens sobre coisas que recebiam para seu mantimento. D. Manuel, em 1515, atendeu a Universidade, mandando passar uma provisão «pela qual faz graça e mercê e há por bem que o reitor, que então era, e pelos tempos adiante fosse, visse as qualidades de cada uma das pessoas sobreditas [isto é, dos lentes, deputados, conselheiros, estudantes e oficiais da Universidade] e as quantidades das cousas, assim das que eles trouxessem ou mandassem vir de fora, como das que lhes mandassem seus pais, parentes e amigos, para suas despesas; e segundo o que a ele parecesse, que cada um dos sobreditos havia mister para manter e sustentar sua pessoa, e toda a despesa de sua casa honestamente em qualquer mercadoria, disso mesmo ele reitor mandasse certeza a cada uma das ditas casas de alfândega e portagem; pois havia por bem e mandava que lhes não levassem dízima alguma, nem outro nenhum direito, porque assim era sua mercê, pelo desejo que tinha de aumentar e favorecer o dito Estudo; e que ficaria resguardado aos rendeiros verem se a despesa, que o reitor desse, era demasiada, porque então mandariam seu direito do que de mais fosse dado, que excedesse a despesa necessária.» (Leitão Ferreira).

Ligadas ao pensamento reformador dos estatutos apresenta-nos o reinado de D. Manuel um conjunto de medidas dignas de referência.

Em 1496 obteve um breve do papa Alexandre VI, pelo qual os prelados e cabidos de cada igreja metropolitana e catedral proveriam, mediante concurso, em duas conezias e respetivas prebendas, uma num doutor ou licenciado em Teologia, outra num doutor ou licenciado in utroque jure, ou só num dos Direitos, canónico ou civil.

Aquelas chamaram-se conezias magistrais, e a estas doutorais, e por elas se procurou simultaneamente elevar o nível intelectual dos cabidos e assegurar o sustento de alguns graduados da Universidade.

O breve de Alexandre VI era cópia do que Sisto IV expedira para Espanha em 1474, e pela reação de alguns cabidos só ao fim de muitos anos veio a ter plena execução. Na regência de Dona Catarina a apresentação dos licenciados e doutores passou para a Coroa.

Resolvido assim, em parte, o velho pleito entre a Universidade e os prelados e cabidos, curou D. Manuel da instalação da Universidade, doando-lhe em 1503 novos edifícios, sitos no local ainda hoje designado Escolas Gerais, a São Vicente.

Em 1517 fundou no mosteiro de São Domingos de Lisboa o colégio de São Tomás para vinte colegiais, catorze da ordem de São Domingos de Lisboa, e seis da ordem de São Jerónimo; e finalmente pensou estabelecer uma outra Universidade em Évora, para o que chegou a comprar terrenos junto do Moinho de vento, pertencentes ao coudel-mor Francisco da Silveira, pensamento que só veio a ter execução, aliás com finalidade diversa, no reinado do cardeal D. Henrique, em 1559.

Os estatutos de D. Manuel foram ditados num dos momentos culminantes da história do Ocidente e de Portugal, quando o espírito da Renascença começava a irradiar de Itália pela Europa e os descobrimentos condicionavam um novo rumo da política, da economia mundial e do próprio pensamento. Na simultaneidade de tão grandes e fecundos acontecimentos não é hoje fácil, à míngua de elementos, discriminar a quota-parte da reforma universitária na renovação científica do país, tanto mais que à provável influência direta do Estudo de Lisboa veio acrescentar-se, quando não opor-se, a imigração de professores estrangeiros e a importação intelectual dos nacionais que se haviam ilustrado e formado nas universidades de além--fronteiras. É possível que no ensino do direito civil começasse o ocaso da escola dos glosadores bolonheses; mas temos por seguro que foi no ensino da gramática, especialmente pelo magistério de Estêvão Cavaleiro, que primeiro se insinuou a nova cultura renascente. D. Manuel falecera em 1521. D. João III, ao suceder-lhe, conservou o regimento da Universidade de Lisboa, mas indiretamente preparou uma das mais profundas reformas da cultura nacional, patrocinando a formação intelectual da juventude em universidades do estrangeiro.


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