Instituições de Cultura (séculos XIV-XVI)

Ao certo, ignoramos as razões que imperaram no ânimo de D. João III.

Em nosso juízo, não pode invocar-se a decadência científica do Estudo de Lisboa nem o intento de uma nova orgânica do ensino superior.

Como demonstrou o bispo D. Manuel do Cenáculo Vilas Boas, nos eruditíssimos Cuidados Literários do Prelado de Beja (Lisboa, 1791), «não é de consentir que fosse a falta, não dizemos só de sábios ordinários, ou reduzidos a retiro e desconhecimento, mas ainda de sujeitos egrégios acreditados, e de muito respeito, pois certamente os houve». Prova-o razoadamente com a Oração de sapiência proferida por André de Resende em 1534, na qual o famoso humanista nos legou como que um panorama científico da Universidade de Lisboa, num momento em que a sua existência já estava irremediavelmente comprometida; e descendo do panegírico ao exame dos factos, conclui que «desta escola felicíssima saiu o trabalho no Estudo Geográfico dos Teixeiras em tempo d’el-rei D. João II, que serviu à curiosidade de Ortelio; aí se habilitaram os sagazes descobridores de novos Climas: os João de Castro para escrever a Navegação a Suez e o Roteiro da Índia; os Fernando Vaz Doirado, nos preciosos Mapas da Ásia; os Martinho de Figueiredo, Garcia Dorta, Cristóvão Africano e outros sobre a História Natural». «Na ordem dos Matemáticos estão o sábio Pedro Nunes, Diogo de Sá, Francisco de Melo e Frei Lucas... e dos Teólogos nomeados acrescentamos por muitos a Osório, Álvaro Gomes, Frei António da Fonseca, Frei Gaspar do Casal, Frei Jerónimo da Azambuja, Frei Baltazar Limpo, nomes de grande acatamento».

Ao transferir a Universidade para Coimbra, D. João III não estabeleceu uma orgânica diversa: conservou os estatutos manuelinos, por forma que a trasladação se caracterizou essencialmente pela incorporação de professores novos alguns estrangeiros. Fez acima de tudo uma reforma de pessoal, e que obstava a que esta medida se tomasse em relação a Lisboa, tanto mais que os provimentos se faziam com a cláusula de interinidade? Talvez por ressentimento pessoal, talvez para ser agradável ao reformador de Santa Cruz de Coimbra, Frei Brás de Barros, o certo é que desde 1532, pelo menos, lhe surgiu o intento, logo divulgado, de trasladar o Estudo. Uma coisa parecia assente: a Universidade não continuava em Lisboa, e perante este propósito acudiam naturalmente as sugestões e requerimentos de várias cidades. O arcebispo de Braga inculcava o Porto ou Braga; a Câmara de Coimbra lembrava a sua cidade, respondendo-lhe D. João III em 9 de Junho de 1533 que vira «bem vossa carta, e as razões que para isso dais, e vos agradeço a lembrança que me disso fazeis; e porém até ao presente eu não tenho nisto assentado cousa alguma; e havendo-se alguma coisa de fazer, eu terei lembrança do que me enviais dizer»; e finalmente Évora era lembrada nas cortes de Évora de 1535, requerendo os procuradores, no capítulo 159.°, que «mandasse acabar os estudos de Évora que são começados, e que aí se ordenem lentes e que as duas prebendas da Sé, que são ordenadas para um Teólogo e para um Canonista, que rendem duzentos mil réis cada uma, e as obras da Sé que não são apropriadas para cousa alguma senão para as ditas obras e rendem novecentos mil réis cada ano se apliquem aos ditos Estudos, e será aso que hajam mais letrados em seu reino e que não se leve o dinheiro para fora do reino que os estudantes lá gastam». A que El-Rei respondeu: «Agradeço-vos a lembrança».

Porém, ao capítulo 172.°, que contém o seguinte: «Item —pedem a V.A. que mande aprender de Física quarenta ou cincoenta cristãos velhos que para isso tenham habilidade, porque esta ciência não anda agora senão em cristãos novos, dando V.A. esperança na dita ordenação de os honrar e lhes fazer mercê, porquanto disto se seguirão muitos proveitos e muito repouso a seus reinos e senhorios» deu El-Rei esta resposta: «Eu ordeno em Coimbra uns estudos em que se lerá Medicina, e poderão aprender os que quizerem.» (Leitão Ferreira, «Notas Inéditas às Notícias Cronológicas da Universidade de Coimbra», in O Instituto, vol. XIV).

A partir de 1535, pelo menos, Coimbra foi a cidade preferida, e com efeito dois anos depois, em Abril de 1537 pela trasladação da Universidade, adquiria a feição de cidade universitária, que tem mantido. Dissemos já serem ignorados os motivos da trasladação, assim como os da preferência de Coimbra; mas, pelo que a estes respeita, cremos ter sido decisivo o poderio de Frei Brás de Barros, ou de Braga, reformador do mosteiro de Santa Cruz.

Desde o alvorecer da nacionalidade Santa Cruz fora um centro de atividade intelectual, mas nunca os estudos se elevaram a um plano tão alto como quando Frei Brás de Braga (1484-1559) presidiu aos destinos do famoso mosteiro, como reformador dos Cónegos Regrantes (desde 1527) e instaurador do ensino das humanidades. Aos seus esforços e valimento junto de D. João III, a esta hora verdadeiro pai das letras, se deve porventura o carácter inconfundível de Coimbra, ao convertê-la, num momento em que se debatiam várias ambições locais, em cidadela de estudos. Em 1535, segundo a crítica mais recente (M. Brandão), existia já em Santa Cruz de Coimbra um corpo de mestres de Artes, Filosofia e porventura Teologia, entre os quais «os franceses que vieram de Paris». Por quatro colégios, no mosteiro ou à sua volta — Todos-os-Santos, São Miguel, Santo Agostinho e São João Baptista — alguns dos quais ainda não conclusos, se repartia o concurso numeroso dos estudantes. A traça dos edifícios e a seleção dos mestres revelam-nos a grandeza do plano de Frei Brás, e quer-se melhor prova, que a fundação da oficina tipográfica no próprio mosteiro? Germão Galharde, impressor francês, fora (1530-31) o seu organizador, mas em 1532 já eram os cónegos quem compunham e tiravam. Famosa sobretudo até 1536, desta oficina saíram vários livros religiosos e de humanidades, entre os quais as Institutiones... latinarum literarum (1535) de D. Máximo, e, em 1534, o De divisionibus et difinitionibus de Boécio, «em que que já se vêem, no juízo do erudito Frei Fortunato de São Boaventura, alguns lugares de caracteres gregos perfeitamente trabalhados, que mostram bem quanto floresciam aqueles prelos».

Sobre o valor destas escolas, nas quais era «opróbrio falar, salvo em latim ou grego», legou-nos o célebre humanista Nicolau Clenardo um depoimento notável ao recordar na Epístola aos Cristãos a sua passagem por Coimbra (1537):

«Por esse tempo andava el-rei empenhado em levantar nessa cidade a nova Universidade. Será necessário alongar-me aqui em elogios, quando el-rei em pessoa cada dia e cada vez mais se impõe por si próprio à nossa admiração? Era tempo de férias; portanto não havia aulas nas várias disciplinas. Não posso formar um juízo senão da aula de grego, a qual me deixou assombrado com o novo milagre: — Vicente Fabrício comentava Homero, não traduzindo-o de grego para latim, mas como se o fizesse na própria Atenas! Nunca até então eu vira tal em parte alguma. E os discípulos imitavam o mestre com não menor aplicação, empregando também a língua grega quase exclusivamente.

«A julgar por estes presságios, se me é lícito meter a profeta, Coimbra há-de vir a ser um centro florescentíssimo no estudo das línguas. Quanto à teologia, deram-lhe muito brilho três frades, os quais, tendo frequentado esta Universidade apenas alguns meses, disputaram sobre um tema que lhes foi proposto, com tanta agudeza, que foram seguro testemunho sobre quão ilustres mestres eles ali ouviam. Se é certo que a glória alimenta as artes, quem não vê que está reservado a Coimbra ainda um dia vir a sobrepujar a própria Salamanca? El-rei também se não poupa a nenhumas despesas, tendo dotado as cadeiras com proventos tão gordos, que em toda a Espanha não logram os professores melhores salários.» (Trad. do Prof. G. Cerejeira).


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