Instituições de Cultura (séculos XIV-XVI)

A realidade confirmou o vaticínio do famoso humanista. Com a nova fundação da Universidade em Coimbra, a munificência régia «desterrou toda a barbaridade deste reino, convocando para a sua cultura homens doutíssimos», no dizer de André de Resende, assim nacionais como estrangeiros, de Alcalá, Salamanca, França e Itália. Coimbra reputava-se uma nova Atenas, e desde então a sua história tornou-se inseparável da história pátria.

Com o amparo real, verdadeiro mecenato, conseguira Frei Brás organizar na famosa casa dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho cursos regulares de Artes ou Humanidades. Segundo o cronista Frei Nicolau de Santa Maria, e com ele quase todos os historiadores, os cursos teriam começado em 1528; porém recentemente o Dr. Mário Brandão estabeleceu com documentada crítica que «a primeira referência certa a estudos no Mosteiro... [aparece] numa carta do rei para Frei Brás, de 20 de Agosto de 1530, em que manifesta o desejo de ser informado sobre a forma da suplicação que este fizera a Roma acerca de cousas que tocavam aos estudos. Este testemunho, porém, se nos prova que já então se pensava seriamente nos estudos, não informa se já se lia ou não no Mosteiro. Afigura-se-nos que não. Cremos que só em 1535 se inauguraram cursos regulares em Santa Cruz. Foi neste ano que vieram para o mosteiro professores franceses e no fim de Setembro inaugurou-se o ensino das Artes começando um mestre a ler o primeiro ano do curso: a Lógica. Os outros lentes ocupariam as cátedras de Gramática e Humanidades, e não sabemos mesmo se as de Teologia.» (O Colégio das Artes, I).

Além da época da inauguração dos estudos regulares no mosteiro, o mesmo investigador teve a fortuna de corrigir o suspeito cronista sobre um outro ponto fundamental: a fundação dos colégios no Mosteiro de Santa Cruz. Passava como assente que em 1528 se haviam fundado o Colégio de São Miguel, «para homens fidalgos e da principal nobreza do reino», e o Colégio de Todos-os-Santos, para «estudantes honrados pobres». Com boa crítica e abundantes factos, o Dr. Mário Brandão, provou a um tempo que a edificação destes colégios começou em 1536 e não 1528, e se destinara o de São Miguel para canonistas, ou canonistas e teólogos, e o de Todos-os-Santos para estudantes teólogos e artistas.

Posteriormente à fundação destes colégios, situados junto do mosteiro, organizaram-se os colégios de Santo Agostinho e São João Baptista, porém com características diversas. Os da nova fundação foram simples locais de aulas; os de Todos-os-Santos e de São Miguel, casas destinadas ao estudo e aposentadoria de colegiais, a quem o mosteiro sustentava. Graças aos documentos publicados por Mário Brandão, sobretudo a Traça das constituições dos colégios de Todos-os-Santos e de São Miguel, que ele descobriu no Arquivo da Universidade de Coimbra, conhecemos hoje a organização interna dos dois colégios, e sobre a qual nos devemos deter, pela luz que derrama sobre a vida escolar da Renascença. Cada um dos colégios aposentava nove colegiais, durante o tempo máximo de sete anos. A admissão ao colégio fazia-se por concurso de provas, as quais se prestavam perante o convento e colegiais. As vagas eram anunciadas por éditos de quarenta dias em Coimbra e nas cidades mais importantes do reino, decorridos os quais os opositores se apresentavam ao prior do mosteiro para serem admitidos à oposição, sendo desde logo excluídos os que, até ao quarto grau, tivessem «casta de judeus, mouros ou gentios, fossem infames ou filhos de infames, casados, viúvos, fossem ou tivessem sido professos ou noviços de alguma ordem religiosa, e doentes de alguma enfermidade contagiosa, ou impetrassem carta ou rogo de alguma pessoa poderosa ou de outra qualquer».

O concurso constava de duas lições sobre as Decretais, arguidas por três colegiais dos mais novos, e o provimento fazia-se por maioria de votos, votando o prior, os colegiais e os conciliários e canonistas escolhidos pelo prior.

Na votação devia preferir-se o mais digno, «e mais disso, o que for mais hábil, virtuoso e mais pobre». O candidato admitido, no dia em que vestia o hábito do colégio, jurava perante o prior de Santa Cruz guardar as constituições e «ser sempre em ajuda, e favor e serviço do Mosteiro». O reitor do colégio designava-lhe um colegial mais antigo para lhe ensinar as constituições.

Os colegiais de Todos-os-Santos usavam «uma loba de pano pardo, que quase cubria os pés e capelo singelo do mesmo pano», e os de São Miguel uma loba roxa sem colar, do mesmo comprimento, e uma beca do mesmo pano. O hábito era obrigatório fora do colégio, sob pena de multa, e era-lhes proibido o uso de camisas lavradas e luvas perfumadas, «nem outras coisas semelhantes». Dentro do colégio usavam uns roupões da cor das lobas, os quais apertavam pela frente e tinham as mangas mais curtas.

Ouviam missa diariamente, no inverno às seis, e no verão às sete horas, jejuando nos dias de jejum no convento, e além de outras obrigações religiosas, cumpria-lhes assistir em Santa Cruz a «todas as festas que forem de quatro cantores».

As refeições faziam-se em comum, lendo-se ao jantar passagens do Antigo Testamento e à ceia do Novo. A refeição era precedida da bênção da mesa, e o que não assistia à bênção não comia o primeiro prato, ou, no dizer das constituições, da «primeira pitança».

A língua dos colegiais entre si e dentro do colégio, era o latim — regra uniforme de todos os colégios da Renascença, e que em Coimbra foi exemplarmente respeitada, como testemunhou Nicolau Clenardo ao visitar Santa Cruz.

Semanalmente realizavam-se dois «exercícios de Letras» durante o ano lectivo, isto é, do dia de São Lucas ao de São João — às quartas-feiras, conclusões, e aos sábados lições, com ponto de vinte e quatro horas. As conclusões, que se inscreviam num quadro na «casa das conferências», e as lições, eram arguidas pelo menos por três dos colegiais mais modernos. Os exercícios escolares faziam-se dentro do colégio e para os colegiais: porém, sempre que o prior de Santa Cruz ordenasse, os colegiais deviam ler perante os cónegos regrantes do mosteiro. A vida interna era severa e rigorosa, e orientada para o estudo, moralidade e cumprimento dos deveres religiosos. A portaria, sempre fechada, cerrava-se para os colegiais desde o toque das Ave-Marias no convento ao amanhecer do dia seguinte, podendo apenas abrir-se para o médico ou nos casos em que o prior dispensasse. Anualmente, os colegiais elegiam entre si o seu reitor, porém a autoridade suprema residia no prior de Santa Cruz.

Os colégios de São Miguel e de Todos-os-Santos significam o dealbar da Renascença em Coimbra, e se nos detivemos sobre eles, um pouco à margem do assunto, foi pelo que nos esclarecem acerca do viver interno de um tipo de instituição escolar de vária e larga fortuna histórica e dos objetivos pedagógicos de D. João III. Ao patrocinar a reforma monástica e intelectual de Frei Brás de Barros, o Rei Piedoso pensava já em Coimbra como sede da Universidade reformada.

«Eu sempre fiz fundamento quando determinei mandar fazer esses estudos de fazer universidade e escolas gerais», escrevia a Frei Brás de Barros em 9 de Fevereiro de 1537, e nesta frase se denuncia a cuidadosa premeditação de trasladar a Universidade para Coimbra e, porventura, o propósito de a instalar no convento de Santa Cruz.

A instituição de estudos regulares no famoso mosteiro aparece-nos, assim, como ato preparatório e sondagem às possibilidades de Coimbra, e agora que a opinião ilustrada via nos colégios de Santa Cruz a mais brilhante e prometedora afirmação escolar da época, porque não rematar a obra com a trasladação da Universidade?


?>
Vamos corrigir esse problema