Instituições de Cultura (séculos XIV-XVI)

No rápido debuxo da organização escolar que tracejámos até agora, detivemo-nos apenas no ensino superior ou universitário, porque, em rigor, durante quase todo o período histórico de que nos ocupamos, só este ramo de ensino foi considerado pelo Estado como serviço público. Existiram, como é óbvio, escolas elementares. Assim, a partir de 1500, há documentos que nos atestam a existência de escolas de primeiras letras em várias localidades e segundo a estatística de Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa possuía em 1551 trinta e quatro mestres de ensinar a ler, os quais eram subsidiados apenas pelos particulares, que aliás lhes pagavam miseravelmente. Era um ensino particular e mau, se dermos crédito ao juízo do cronista João de Barros, que no Diálogo em louvor da nossa linguagem diz que «Quando um moço say da eschola, nã fica cõ nichil [nada]», por ser permitido «é todalas nobres villas e cidades, qualquer idiota e nã aprovado em costumes de bõ viver poer eschola de insinar mininos». O ensino primário oficial se excetuarmos o que rudimentarmente se ministrava nas colónias ultramarinas, foi uma criação do marquês de Pombal, e não podia ter sido criado anteriormente porque a ideia da generalidade do ensino não havia conquistado ainda o espírito das classes dirigentes do país. O Estado e as instituições eclesiásticas patrocinavam, talvez com mais eficiência prática que nos nossos dias, o acesso dos pobres à cultura superior; porém com carácter individual e benemerente, sem a feição impessoal dos tempos modernos, que trocaram o respeito à aristocracia de sangue pela necessidade de formar a aristocracia do mérito. Em rigor, o ensino orientava-se no sentido da hierarquia social e da formação de profissionais, e com tal objetivo compreende-se que o Estado considerasse acima de tudo o ensino superior. A reorganização universitária de D. João III apresenta-nos a apoteose desta ideia. A Universidade deixa de ser, como fora na Idade Média, uma escola de cultura geral, para se tornar profissional e científica, orientada para a especialização e para a investigação; e como corolário desta nova estrutura impunha-se naturalmente a preparação para a escolaridade universitária, tanto mais que a Renascença havia transformado as humanidades, de meras disciplinas propedêuticas, em estudos fundamentais e autónomos. A coerência da reorganização universitária impunha, pois, a instauração de um novo ensino preparatório para a Universidade, ou ensino secundário, para empregarmos a linguagem atual, e com efeito é a D. João III que a instrução pública deve simultaneamente os fundamentos deste ramo escolar e a renovação pedagógica e científica do ensino das Artes.

Em 1541, o reitor Frei Diogo de Murça fazia sentir ao rei a deficiência que em Coimbra notava no ensino dos «princípios da latinidade», como que a atrair a sua atenção para a urgência da reforma dos estudos menores. O rei assim o compreendeu; e, poucos anos volvidos sobre esta sugestão, apoiada seguramente por outros dirigentes, fundava com largueza de vistas e sem olhar a despesas, o Colégio das Artes de Coimbra, com o qual simultaneamente elevava o ensino das humanidades a um plano nunca mais ultrapassado e obviava à emigração de bolseiros e, por esta, ao possível contágio das ideias luteranas. André de Gouveia, grande pedagogo da Renascença e então principal do Collège de Guyenne, de Bordéus, foi o organizador emérito da nova escola, cujas aulas de latim, grego, hebraico, matemática e filosofia se inauguraram solenemente em 21 de Fevereiro de 1548 com a De liberalium artium studiis oratio, de Arnaldo Fabrício (Coimbra, 1548). Verdadeiro colégio real, de ensino gratuito, a sua fundação representou como que a réplica portuguesa do Collège de France. Os estatutos de Paris e do colégio coimbrão «quase todos são uns», dizia-se; e, para além da semelhança do regimento, André de Gouveia como que transplantara em Coimbra um colégio francês. Com ele vieram, de Bordéus, Nicolau Grouchy, comentador de Aristóteles e futuro tradutor da História dos Descobrimentos e Conquista da Índia de Fernão Lopes de Castanheda, Guilherme Guerente, Arnaldo Fabrício, Elias Vinet, arqueólogo e matemático, Jorge Buchanan, grande humanista, poeta e historiador escocês, e seu irmão Patrício, e os portugueses Diogo de Teive, João da Costa e António Mendes, aos quais agregou, dos mestres estantes em Portugal, seu irmão Marcial e Mestre Eusébio. O Colégio das Artes foi a última grande fundação de D. João III, porém efémera, porque o rei como que se temeu da própria obra. Pelo regimento primitivo o Colégio era completamente independente da Universidade, importando esta autonomia não só desembaraço administrativo como emancipação da tutela teológica; mas após a morte de André de Gouveia, que sobreviveu pouco depois da sua vinda para Coimbra, em 9 de Junho de 1548, a autonomia do Colégio não só foi limitada com a atribuição da inspeção ao reitor da Universidade, como a vida dos professores se tornou intolerável: suspeitas, competições, invejas, lutas do Principal, e por fim a prisão nos cárceres da Inquisição, «por sentirem mal da fé e serem da seita de Lutero», de João da Costa, o Principal, Diogo de Teive e Jorge Buchanan.

Acusação exata para este, como posteriormente se viu, depois do seu regresso a Inglaterra, mas não para aqueles que apesar de familiares de luteranos e indulgentes para os inovadores e inovações, jamais transpuseram a religiosidade interior que o incipiente evangelismo parisiense advogou.

Furta-se ao nosso objetivo a história do Colégio, aliás narrada recentemente numa tese muito documentada. Para figurarmos, porém, a sua importância no ensino público, bastará aludir à frequência. Segundo o Dr. Mário Brandão, «em meados de Abril de 1548 os estudantes ainda não são mil, mas em fins desse mês já ultrapassam esse número, em 12 de Dezembro quase atingem já o de 1200, para virem a orçar pelos 1500 no verão de ISSO»; e na derradeira década do século, depois da entrega do Colégio aos jesuítas, «ouviam as preleções dos mestres da Companhia uns 2500 a 2600 estudantes». Tão numeroso concurso de artistas, ou liceais, se quiséssemos falar em linguagem de hoje, o qual nos dá quase a medida dos que então aspiravam às profissões liberais e científicas, repartia-se em duas classes: alunos externos, a grande maioria, e alunos internos — todos sujeitos ao mesmo regime portas a dentro. O internato não era idêntico ao dos colégios dos nossos dias, porque havia três grupos de alunos; os porcionistas, que pagavam semestralmente o seu sustento, constituído por «porções» ou alimentos diversos; os camaristas, que se alimentavam à sua custa, fornecendo de fora os alimentos, que eram preparados na cozinha do colégio, e os familiares, estudantes pobres, sustentados pelo colégio a troco de alguns serviços.

Em 1555, o Colégio das Artes, já desfigurado, teve o seu termo natural: a entrega à Companhia de Jesus, que desde então até à sua expulsão de Portugal deteve o monopólio do ensino secundário. Nascera sob o signo da Contra-Reforma, e as vicissitudes e dramas da sua história não são mais do que a consequência da nova ideologia rapidamente triunfante.

Começa então um período novo, novo nas ideias, nos métodos e na finalidade do ensino, que veio a concretizar-se no domínio absoluto do Ratio studiorum e cuja narração ultrapassa o limite fixado a este estudo.


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