Instituições de Cultura (séculos XIV-XVI)

O filósofo moralista não se contentou com ter exposto e fundamentado esta opinião. Descendo da teoria à realidade nacional, na famosa carta que de Bruges dirigiu ao futuro rei D. Duarte, escrita entre 1424-1428, expunha-lhe a opinião de «que a Universidade de vossa terra devia ser emendada, e a maneira vos escreverei segundo ouvi dizer a outro que nisto mais entendia que eu. Primeiramente, que na ditta Universidade ouvesse dous ou mais Collegios em os quaes fossem mantheudos escolares pobres e outros ricos vivessem dentro com elles a as suas proprias despezas, e todos morassem do Collegio a dentro, e fossem regidos por o [principal?] que de tal Collegio tivesse carrego: a ordenança [desto] he tal. Em a Cidade de Lisboa e em seu termo ha da Universidade sinco ou seis Igrejas e em aquestas se podião bem fazer outros tantos Collegios, e a cada hum que tivesse hum vigario, que desse os Sacramentos [...] que para aquelle Collegio fossem deputados, e estes dormissem em hum paço que tivesse Cellas e comessem juntamente em hum lugar, e fossem çarrados de so huma clauzura. Aquestes, Senhor, despois que ouvessem dous annos em a Universidade fossem graduados e lessem por juramento e avendo elles tal criação com ajudorio de graça de Deus senão bem acostumados eclesiasticos, e ainda os Bispos com seus Cabidos poderião fazer cada hum Collegios para seus naturais e os Monges pretos outro só pera si, e os Conegos Regrantes outro, e os Monges brancos outro, e ordenassem estes Collegios por maneira dos de Uxonia e de Paris, e assi crecerião os Letrados e as Sciencias [...] e até disto se seguiria que vos achareis Letrados para offiçiaes da Justiça e quando alguns vos desprouvessem terieis donde tomar outros, e elles temendo-se do que poderia acontecer servirião melhor e com mais diligencia: [...] parece-me, Senhor, que se a vossa mercee isto quizesse mandar averia grande honra a terra e proveito por azo da Sabedoria que deve ser muito presada, que a muitos tirou e tira de mal-fazer; mas devião ser tais ordenadores, que já estiverão em dittas Universidades, bons homens e avizados dos costumes, ou mandardes a alguem que vos escrevesse o regimento dos ditos Collegios.»

Nem D. Duarte, nem o infante D. Henrique deram execução a este plano reformador, que teria condicionado talvez um ritmo mais europeu à nossa cultura científica do século XV, e sem dúvida importaria um câmbio profundo na estrutura da Universidade, pela substituição do modelo de Bolonha e de Salamanca, sob cuja ascendência havia nascido e crescido, pelo modelo de Oxford. De organismo corporativo, governado predominantemente pelos estudantes, passaria a ser uma instituição gravitando em torno dos interesses e competições científicas e morais, sob a autoridade dos principais dos colégios. Tão profunda reforma teria encontrado necessariamente a resistência dos costumes e interesses consolidados; por isso se compreende que nem o infante D. Henrique, como protetor da Universidade, nem D. Duarte, nos breves cinco anos do seu reinado (1433-1438), nem o próprio infante D. Pedro, durante a regência (1440-1446) na menoridade de D. Afonso V, a tivessem levado a cabo. Foi um particular e por motivos piedosos, como particulares e piedosos foram grande parte dos instituidores dos Colégios de Oxford e de Paris, quem lhe deu um começo de execução: Diogo Afonso Mangancha, doutor in utroque jure, mestre em Artes e lente de Leis no Estudo de Lisboa.

Diogo Afonso havia casado em primeiras núpcias com Branca Anes, a qual, ao falecer, lhe legara os seus bens com a condição de que todos os bens do casal fossem aplicados à fundação de um colégio. Casou mais tarde com Maria Dias, que lhe sobreviveu. De nenhum dos matrimónios teve descendência, e talvez por esta razão, no seu testamento de 9 de Dezembro de 1447 determinou que «todos nossos beens fossem estatuidos, e hordenados para um collegio, ffeito nas nosas casas da morada da beira de Ssam jorge», em Lisboa. O testamento foi aprovado e publicado em 8 de Janeiro de 1448, a requerimento de sua viúva Maria Dias e de outras pessoas, e desde então, segundo parece, o colégio começou a funcionar.

Segundo o testamento, simultaneamente instrumento e regimento da fundação, o colégio comportaria dez colegiais «pobres de todo», e quatro servos, devendo ser recebidos pela primeira vez 10 escolares já gramáticos, com mais de 16 anos, e se fossem sacerdotes, ainda que não tivessem o ato de gramática e a aprendessem, deviam ser aceites por eleição da Universidade e de Maria Dias, sem interferência do rei, de um arcebispo ou de qualquer outro «poderoso». O colégio ficava sob a fiscalização da Universidade, à qual prestariam contas o reitor e o escrivão, que deviam ser colegiais.

Além dos bens para o sustento do colégio, Diogo Afonso legou os seus livros com os quais se formaria «huma livraria per cadeas», e determinou que todos os dias em que não houvesse lição um dos 10 colegiais diria missa na capela do colégio, oficiada pelos companheiros, se soubessem, por alma do instituidor e de suas esposas, e que se não dessem promessas de lugares no colégio, mesmo da parte do papa, do rei ou da universidade. Cuidara ainda o benemérito fundador do regimento interno, estatuindo que haveria apenas duas refeições diárias, e que cada colegial tivesse sua câmara com leito de madeira e «estudo», isto é, escrivaninha, não lhes devendo ser consentida a posse de «azémola ou bêsta».

A fundação foi executada, e o colégio, portanto, teve começo de vida; mas ou por insuficiência das rendas, por malquerenças da Universidade ou por desordem interna, o certo é que a sua vida foi curtíssima. Por uma escritura lavrada em 4 de Julho de 1459 a Universidade emprazava já umas casas sitas a São Jorge, que eram as casas do colégio do Dr. Mangancha, anexadas pelo rei ao Studo para nelas se edificar uma capela. A dez anos e meio da fundação, o colégio desaparecia, incorporando-se os seus bens na Universidade; e com o seu desaparecimento amputou-se uma forma de vida universitária, que a desenvolver-se teria imprimido uma feição diversa ao ensino superior em Portugal. Mais tarde, depois da transferência da Universidade para Coimbra, em 1537, surgem-nos de novo os colégios; porém mais como aposentadorias, que instituições a um tempo científicas e de residência.

O infante D. Henrique, como protetor da Universidade, nem realizou o plano renovador proposto por seu irmão, o infante D. Pedro, nem amparou a iniciativa do Dr. Mangancha; contudo, o seu nome é inseparável da história das reformas universitárias, material e cientificamente.

Materialmente, instalou de uma forma condigna o Estudo. As casas da Moeda Velha, haviam-se tornado insuficientes, se é que o não foram sempre, de tal forma que «non tijnha casas proprias em que leessem e fezessem seus atos scolasticos de todas as sciencias, ante andava sempre per casas alheas, e de aluguer, como cousa desabrigada e desalojada». Estas palavras são do infante D. Henrique; e compreende-se que perante tão mísera situação os seus deveres de protetor o exortassem a instalar convenientemente o Estudo. Em 12 de Outubro de 1431 adquiriu umas casas na freguesia de São Tomé, que era o bairro dos escolares, doando-as no mesmo dia à Universidade, por entender «que se a dita universidade tevesse morada e casas de seu, que esto seria azo de mais seu assessego, e firmidõe pera os ditos Regnos sempre em si terem sabedores assi pera defenderem a santa fee catolica, como os beens temporaes, ainda pera saude dos corpos, e pera todos outros boons insinos, e crecerem sempre em elles».

Mais importante, porém, que a nova instalação da Universidade, na qual se conservou até ao reinado de D. Manuel, foi o aumento das cátedras universitárias. Ao doar as casas à Universidade, o infante não curou apenas de instalar as cátedras existentes. Como ele próprio declara, comprara-as «pera se em ellas auer de ler de todas as sciencias aprovadas pella Santa Madre egreia», quer dizer, ampliava as instalações, porque aumentava de par o quadro das disciplinas, por forma que o Estudo lisbonense se tornasse similar das universidades da Cristandade. E assim é que desenvolvendo o seu pensamento no instrumento de doação, declara que passarão a ensinar-se:


?>
Vamos corrigir esse problema