1. Período de indecisão e triunfo da corrente regeneradora

A portaria de 27 de Setembro de 1820, lavrada em Alcobaça, aonde na véspera tinham chegado os membros da Junta portuense, pôs termo ao conflito com o Governo interino de Lisboa; os dois governos incorporaram-se num só, «encarregado provisoriamente da direção dos negócios e administração pública, e dos trabalhos preparatórios para a convocação das Cortes». Apesar da duração limitada deste governo, cujas funções cessariam com a abertura das Cortes, e de se haver acordado, em respeito ao princípio da soberania nacional, que ele não legislaria, atribuição privativa das futuras Cortes, a administração e o mando público não se compadeciam com tão numeroso ministério. Por isso se resolveu reparti-lo em duas secções: a Junta Provisional do Supremo Governo do Reino, tendo a cargo a administração pública em todos os ramos e a Junta Provisional Preparatória das Cortes, cuja função seria «preparar e dispor com a maior brevidade possível tudo o que se julgar necessário para a mais pronta convocação das Cortes, e regularidade e boa ordem da sua celebração».

Na Junta do Governo entraram os seguintes membros: presidente, o Principal decano; vice-presidente, António da Silveira Pinto da Fonseca; deputados, o conde de Penafiel, Hermano José Braamcamp do Sobral, Manuel Fernandes Tomás, Frei Francisco de São Luís e José Joaquim Ferreira de Moura; encarregados de negócios, ou ministros, respetivamente, Fernandes Tomás, do Reino e Fazenda, tendo como ajudantes José Ferreira Borges e José da Silva Carvalho; dos Estrangeiros, Hermano José Braamcamp do Sobral, e seu ajudante, Roque Ribeiro de Abranches Castelo Branco; da Guerra e Marinha, apenas com voto nos assuntos desta repartição, o tenente-general Matias José Dias Azedo, e seu ajudante, o coronel Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda.

A Junta Preparatória das Cortes ficou constituída pelo conde de Sampaio, conde de Resende, barão de Molelos, Sebastião Drago Valente de Brito Cabreira, Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda, deão Luís Pedro de Andrade Brederode, Manuel Vicente Teixeira de Carvalho, Pedro Leite Pereira de Melo, Joaquim Pedro Gomes de Oliveira, Francisco de Sousa Cirne de Madureira, João da Cunha Soto-Maior, Francisco de Lemos Betencourt, Luís Monteiro, Filipe Ferreira de Araújo e Castro, José Maria Xavier de Araújo, José de Melo e Castro Abreu, Francisco José de Barros Lima, José Manuel Ferreira de Sousa e Castro, José Nunes da Silveira, Francisco Gomes da Silva, Bento Pereira do Carmo, José da Silva Carvalho e José Ferreira Borges. Esta Junta, para melhor execução dos seus encargos, subdividiu-se em duas; uma, constituída pelo conde de Sampaio, presidente, o conde de Resende, vice-presidente, e o barão de Molelos e o desembargador Filipe de Araújo e Castro, secretários, tendo por missão tudo o que respeitasse à convocação das Cortes; outra, formada pelo coronel Sebastião Drago Valente e Brito Cabreira, presidente, o desembargador João de Cunha Soto-Maior, vice-presidente, e os bacharéis Francisco Gomes da Silva e Bento Pereira do Carmo, secretários, incumbida de coordenar o que pudesse servir de ilustração à futura Constituinte.

É óbvio que a Revolução carecia, logo de início, de patentear ao País e à Coroa, que não era a rebelião de um grupo; mas a existência de tão diversas e numerosas Juntas revelam claramente o império das emulações e o expediente de procurar pelo alargamento do poder a conciliação de divergências políticas e pessoais.

Todas as classes sociais aplaudiram a revolta contra a influência inglesa no exército e na política, e o protesto contra a situação de colónia a que a metrópole se via humilhada. Nisto não havia divergências, e especialmente o exército, parte por patriotismo, parte pelo interesse das promoções, em virtude da saída dos oficiais ingleses, louvava os revolucionários do Porto; porém, quando estes anunciaram o propósito de «regenerarem» a Pátria, isto é, de reorganizarem o Estado, começou a luta surda entre conservadores e inovadores, e, nalguns sectores da opinião e dos interesses, a dúvida e a apreensão. Daí a marcha cauta dos acontecimentos, porque, se por um lado era necessário dar ao país a impressão de que se não iria montar o cenário de uma nova Convenção, por outro a realidade indiscutível da força da realeza e do sentimento monárquico impedia que se substituísse o rei pela ditadura violenta. Ter compreendido, mal surgiram as discordâncias com Lisboa, a necessidade desta política para salvaguardar os intentos regeneradores de 24 de Agosto, foi um dos méritos de Fernandes Tomás, a alma e o pensamento da Revolução. Por isso, conseguiu que o conflito com o Governo interino e Lisboa se resolvesse, associando os dois governos num só; apaziguou muita gente, satisfazendo-lhe as vaidades de valimento social, decorando-a com as honras do governo; deu representação ao clero, à nobreza e às profissões liberais na Junta Provisional, mas transigindo com pessoas que lhe eram adversas, como António da Silveira, tornava o governo fraco, reduzindo-o ao mero expediente da administração, e adiava para as Cortes o grande gesto revolucionário, que então não foi apercebido por todos, de deslocar a soberania do rei para a representação nacional.

Até à abertura das Cortes não houve, pois, Governo provisório, que por decretos-leis preparasse a nova ordem jurídica e política, e muito menos ditadura; houve apenas uma Junta provisional de mero expediente da administração pública e acima de tudo a preocupação de remover todos os obstáculos que impedissem a rápida instalação das Cortes. O respeito aos princípios democráticos impunha esta tática; cumpre, no entanto, não esquecer que ela resultava ao mesmo tempo da dificuldade de harmonizar correntes opostas, e portanto de as submeter ao poder indiscutível da soberania nacional, e sobretudo de colocar D. João VI, quando regressasse do Brasil, perante a alternativa de aprovar a nova ordem jurídica criada pelas Cortes ou de a repudiar, o que seria a guerra civil.

Sigamos a marcha dos acontecimentos.

O partido militar, representado por António da Silveira e por Cabreira, não tolerava a ascendência crescente dos civis e dos homens de leis.

A sua primeira tentativa de domínio teve lugar em Leiria, quando António da Silveira, presidente da Junta do Porto, sem mais preâmbulos, apresentou a declaração da dissolução da Junta, cujos membros seriam despachados para os lugares que lhes competissem nas respetivas carreiras. Fernandes Tomás iria para a Casa da Suplicação, de Lisboa.

Silveira foi vencido; nenhum aceitou o despacho de nomeação, e energicamente todos declararam que só deporiam o mandato revolucionário nas Cortes.

A segunda tentativa, mais grave, porque esteve à beira da deflagração do pronunciamento militar, cuja história começa precisamente em 24 de Agosto de 1820, ocorreu em Alcobaça, em 28 de Setembro. Foi seu instrumento o coronel Cabreira.

Conta Xavier de Araújo, nas Revelações e Memórias para a História da Revolução de 24 de Agosto de 1820, que Cabreira «apareceu à meia-noite no quarto de Silva Carvalho, todo fardado e pronto; e disse a este que lhe ia participar um sonho, que acabava de ter, e era o de partir para Lisboa com o exército, e das janelas do Paço do Governo convocar o povo, o juiz e Casa-dos-Vinte-e-Quatro, e perguntar-lhes o que queriam que se fizesse. Silva Carvalho perguntou qual seria a sorte do Governo do Porto. Cabreira respondeu que se não importava nada com ela; e então Silva Carvalho lhe replicou que ele ia também dar parte de um sonho que tivera, e é que V. Exa. me revelava isso e eu com estas pistolas lhe metia duas balas na cabeça. Cabreira saiu e Silva Carvalho também, indo ter com Frei Francisco de São Luís para combinarem o que devia fazer-se. Convieram em participar tudo ao coronel Sepúlveda, postado então com a divisão ligeira em Chão de Maçãs, pedindo-lhe confidencialmente que desse força ao Governo. Sepúlveda anuiu e partiu com a divisão ligeira, aparecendo nas alturas de Alcobaça na manhã de 29 de Setembro. Postou a divisão, e partindo para o mosteiro, onde estava a Junta, a convocou e em um discurso que fez disse que deviam cessar todas as discórdias, para que chegassem todos unidos a Lisboa, reunindo-se à Junta ali existente, e convocando Cortes, às quais entregariam o governo do Reino».


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