1. Período de indecisão e triunfo da corrente regeneradora

Foi o primeiro rebate da Martinhada, que nos ocupará em breve; a Junta porém concordou e, forte com o apoio de Sepúlveda, empreendeu a viagem para Lisboa.

Viagem, queriam os civis; marcha sobre Lisboa, pretendia, na obstinação do pronunciamento, António da Silveira, que, ambicionando limitar os objetivos da Revolução à expulsão de Beresford e dos oficiais ingleses, ao regresso de D. João VI, e à convocação das Cortes na forma tradicional dos Três Estados, congeminou outra tentativa para se colocar à frente dos acontecimentos.

Fora o caso que a Junta de Lisboa enviara à Junta do Porto, que com as suas tropas estacionava em Sacavém, uma mensagem na qual lhe propunha que entrasse na capital acompanhada apenas de escolta, e que os regimentos acantonassem em Sacavém, Vila Franca e povos vizinhos. Silveira, insinuando desconfianças sobre a mensagem e seu portador, o barão de Albufeira, ofereceu-se para entrar em Lisboa, sozinho, triunfalmente, à frente das tropas. O suspeitíssimo oferecimento não foi aceite. Os membros da Junta portuense ponderaram-lhe que todos, civis e militares, deviam entrar simultaneamente em Lisboa, mas porque a mensagem poderia esconder algum conluio contra os revolucionários do Porto resolveram informar-se das intenções do governo, do exército e do povo da capital. Foi encarregado desta missão na noite de 30 de Setembro, o capitão Agostinho José Freire, que no regresso de Lisboa, horas depois, trazia a notícia de que o juiz do povo lhe assegurara a sinceridade das intenções do governo e das forças da capital. Com efeito, a Junta teve pouco depois a prova do bom acolhimento que a esperava em Lisboa, ao receber em Sacavém as homenagens do funcionalismo, do governador das armas da Corte e da província, com o seu estado-maior, e do juiz do povo, o qual, acompanhado dos mesteres e em nome do povo de Lisboa, entregou à Junta um ofício gratulatório por ter libertado a Pátria e abrir-lhe «o delicioso caminho da cara e doce liberdade».

 A entrada da Junta em Lisboa, no dia 4 de Outubro, foi triunfal. As ovações sucediam-se ininterruptamente, e atingiram o delírio quando o Principal decano a recebeu no Palácio do Governo. A noite, as luminárias e os espetáculos prolongaram o regozijo, que se repetiu no dia imediato, quando as tropas entraram na capital, e, com mais ou menos entusiasmo, ecoou pelas principais cidades e vilas.

Os vivas à religião, ao rei, às futuras Cortes e à Constituição que elas votassem, as promessas dos manifestos e o decoro dos governantes, exigiam atos, e com efeito, o dia 6 de Outubro foi fértil em providências e declarações. Afirmou-se a fidelidade ao rei; sondou-se a nobreza e o clero; aumentou-se de três vogais a Junta Preparatória das Cortes; convidaram-se as corporações científicas e as pessoas ilustradas a pronunciarem-se sobre « o melhor e mais pronto modo de organizar a representação nacional em Cortes», e preveniu-se a ordem pública, com a nomeação do desembargador Filipe Ferreira de Araújo e Castro para o cargo de Intendente Geral da Polícia.

A afirmação de fidelidade a D. João VI, ao trono e à dinastia, é um notabilíssimo documento; redigiu-o a pena primorosa e vernácula de Frei Francisco de São Luís, e inspirou-o o mais acendrado patriotismo. A admirável carta, que foi acompanhada de proclamações e outros documentos ilustrativos, fez-se a narração oficial e a justificação apologética dos acontecimentos; e ao mesmo tempo o governo assumia o compromisso de prestar contas ao rei dos resultados das providências administrativas e dos trabalhos preparatórios das Cortes e exprimia o voto do regresso de D. João VI «ou de alguma pessoa de sua augusta família, que no real nome de vossa majestade nos governe e supra seus paternais cuidados».

A expressão dos sentimentos monárquicos era sincera; e o voto do regresso do rei não apenas sincero, porque o impunham o mandato da Revolução, a segurança do seu destino e as imediatas conveniências políticas.

Suspeitava-se da animosidade da Corte e dos governantes do Rio, e urgia não só esclarecer o rei como dissipar no país as suspeitas de republicanismo e o pavor da demagogia. Daí o aviso de 6 de Outubro, pelo qual se convidaram os grandes e titulares do reino, o patriarca, arcebispos, bispos, prelados das ordens regulares e presidentes dos tribunais a jurarem, e a fazerem jurar a seus subordinados, obediência à Junta, a D. João VI, às Cortes e à Constituição que elas fizerem, «mantida a religião católica romana e a dinastia da sereníssima Casa de Bragança».

Pela primeira vez nos tempos modernos, o rei ocupava um lugar subalterno; a nobreza e o clero iriam jurar-lhe fidelidade, mas depois de jurar obediência à Junta, isto é ao governo como representante da Nação. Esta subalternidade suscitou sem dúvida murmúrios; mas a hora dos «inauferíveis direitos» não havia ainda soado, e no dia fixado, 11 de Outubro, pessoalmente ou por procuradores, perante a Junta Provisional e no Palácio do Governo, compareceram quase todos os grandes títulos, os duques de Lafões e Cadaval, os marqueses de Abrantes, Alvito, Fronteira, Tancos e Sabugosa, condes de Oeiras, Redondo, Povolide, etc., e entre os retardatários, no dia 13, o conde de Barbacena, hostil ao movimento. Ironia do destino! Entre os que se recusaram a prestar o juramento contava-se o então conde de Palmela, o diplomata da futura emigração liberal e um dos grandes políticos do constitucionalismo, no que aliás cumpriu o seu dever, porque jurar seria trair a confiança que no seu carácter depositara D. João VI, chamando-o ao Rio para gerir o ministério dos Estrangeiros.

A demonstração pública e solene da adesão da nobreza ao governo dos magistrados e dos burgueses fortalecera a Revolução; e se se pode conjeturar que o receio de uma possível tormenta revolucionária vencera algumas hesitações, temos por seguro que a chegada ao Tejo, na nau Vengeur, do marechal Beresford, de regresso do Rio, no dia 10 de Outubro, véspera do juramento, demoveu os tíbios, consolidou o governo e em todos os portugueses fez vibrar o sentimento da dignidade patriótica, desviando as preocupações do Terreiro do Paço para o Tejo.

William Carr Beresford partira para o Rio com o intento de arrancar à hesitação de D. João VI uma resolução, que lhe fortalecesse a autoridade. Conseguiu-o. Pela carta-patente, datada do Rio em 29 de Julho de 1820, o monarca elevava-o a marechal-general, e por tal situação determinava que ficassem sob a imediata autoridade de Beresford todos os corpos militares das três linhas, primeira, milícias e ordenanças; os objetos militares que tendessem à disciplina, armamento, recrutamento do exército, estado das praças e quaisquer fortificações presentes e futuras, arsenais, fundições, trens, obras públicas militares, autoridades e repartições civis do exército, colégio militar, e de modo geral tudo quanto fosse execução de regulamentos, leis e diplomas que fixassem, no presente ou no futuro, regra militar para todos ou para quaisquer dos assuntos referidos. Além disto, autorizava-o ainda a promover até ao posto de capitão inclusive, sem dependência de aprovação régia, fora do reino onde el-rei residisse, e ordenava que em todo o território português os governadores e generais se prestassem a quanto ele exigisse para conhecimento de tudo o que respeitasse ao exército.

Se, antes da partida para o Rio, Beresford era temido e odiado, se um dos mais veementes impulsos da Revolução do Porto e da adesão das unidades militares brotara da hostilidade aos oficiais ingleses e ao mais categorizado de todos eles, o que não seria agora, quando se confiava a Beresford o exército das três linhas, e apenas escapavam à sua autoridade as crianças, os inválidos e os decrépitos?


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