1. Período de indecisão e triunfo da corrente regeneradora

Quando a Vengeur, nau famosa por nela se ter entregado Napoleão à Grã-Bretanha, fundeou defronte da Junqueira, ignoravam-se os termos da carta régia; o general Campbel, que viera a terra, participara apenas ao governo a chegada do marechal e a sua intenção de desembarcar.

Toda a gente, porém, suspeitava que as intenções de Beresford não seriam generosas com a Junta e nesta conformidade o governo fez o seu dever: proibiu imediatamente, pelo ministério da Guerra, o desembarque, e vedou qualquer comunicação com a nau, cuidadosamente vigiada.

A despeito de desautorizarem o monarca, estas medidas impunham-se.

Internamente, Beresford podia tentar com os elementos do exército seus afeiçoados a contrarrevolução; externamente, a indignação popular podia armar o braço de um assassino, e o atentado contra o quase lugar-tenente do rei colocaria o governo em graves dificuldades.

Tudo aconselhava, pois, o isolamento de Beresford; no entanto a Junta diligenciou que ele entregasse os despachos reais de que era portador. Recusou-se, mas a recusa foi inútil, porque neste meio tempo entrou no Tejo a Phenix, trazendo segundas vias daqueles despachos e de um conhecimento de 106 952 pesos espanhóis, que na Vengeur D. João VI enviava para socorro do erário. Após algumas consultas, o comandante da Vengeur entregou aquela importância e a de duas letras sacadas sobre Londres, de 60 contos cada uma, sob condição do montante destas importâncias, no total de 400 contos, lhe ser restituído se o rei não aprovasse ulteriormente a entrega.

Tudo isto se passou com relativa serenidade; os boatos, porém, fervilhavam. Corria de boca em boca que o marechal desembarcara ocultamente para tentar um golpe de estado, e o boato, avolumado pela notícia de conferências de oficiais ingleses e portugueses descontentes com Beresford, espalhou pela cidade a esperança em alguns, o pânico em muitos, a indignação em quase todos. Uns, exaltados, queriam lançar fogo à nau; outros, mais comedidos, pensavam numa representação ao governo, e todos, afinal, fiavam da Junta a dissipação do pesadelo. Na grave emergência, o governo foi resoluto e sem exagero se pode dizer que naqueles dias críticos a sua decisão enérgica salvaguardou o mandato revolucionário, justificando-o perante a consciência de todos os patriotas. Impedindo o desembarque de Beresford e a comunicação com ele, invocando contra os amplos poderes em que o rei o investira a soberania nacional, os perigos da intranquilidade pública e a impossibilidade de lhe garantir a segurança pessoal; castigando com a expulsão imediata do reino quatro oficiais ingleses que infringiram as ordens estabelecidas, conferenciando com Beresford; negando ao conde de Palmela autorização para lhe falar, consentindo apenas que lhe escrevesse, o governo deu à população da capital a sensação da energia calma e decidida. A efervescência dos espíritos não deflagrou em tumultos das ruas; as prevenções de ordem pública e o anúncio de que Beresford sairia no dia 17 para Inglaterra, na nau Arabella moderaram os exaltados. O mau tempo impediu a saída neste dia; e quis o destino, ou a justiça imanente, que a nau levantasse ferro no dia seguinte, terceiro aniversário da execução de Gomes Freire de Andrade.

Escorraçando Beresford, humilhando-o, desrespeitando a missão em que fora investido, a Junta procedeu patrioticamente e ao mesmo tempo advertiu D. João VI, advertência que Palmela, como veremos, compreendeu. Durante a sua estadia no Tejo, o governo procurou isolá-lo, habilmente, das autoridades inglesas. Com o comandante da Vengeur e respetiva tripulação teve todas as atenções da hospitalidade, e para evitar possíveis desinteligências com o governo britânico dirigiu a Lord Castlereagh, ministro dos Negócios Estrangeiros, duas notas, acompanhadas de documentos justificativos, nas quais narrava o que em Lisboa se havia passado com Beresford. Castelreagh respondeu, fazendo declarar pelo agente diplomático britânico em Lisboa que nem ele, nem o seu governo, podiam emitir opinião acerca destes sucessos, por serem da competência exclusiva do monarca português.

Resolvido o conflito, que fortaleceu o governo, um outro ia surgir, bem mais grave, pelos dissídios que logo desentranhou e foram o primeiro anúncio da guerra civil.

O Sinédrio e o séquito dos seus adeptos, ao deflagrarem o pronunciamento militar, sabiam o que não queriam. Não queriam o que estava, isto é, o jugo de Beresford, os oficiais ingleses no exército, o arbítrio e as delongas da administração, a Corte no Rio, a estagnação dos negócios, a ruína da indústria, a decadência da marinha mercante e a miséria nos campos; porém dissentiam no sentido e na amplitude das reformas.

O primeiro rebate do dissídio irrompeu com a convocação das Cortes, aliás por todos desejadas. Toda a gente coincidia em que a convocação não seria um ato revolucionário mas a restituição de «antigas e saudáveis instituições»; quando chegou, porém, o momento de dar realidade à aspiração unânime, surgiram as divergências.

Os timoratos e conservadores queriam umas Cortes de harmonia com a constituição tradicional das ordens do Estado, isto é, umas Cortes nas quais os procuradores se repartissem, segundo as suas qualidades, pelas ordens ou braços da nobreza, do clero e do povo; os inovadores, pelo contrário, propugnavam umas Cortes provindas da soberania nacional e do sufrágio individual, nas quais os deputados, constituindo lima única assembleia, tivessem a mesma situação jurídica e usufruíssem os mesmos direitos de voto e de deliberação.

As Três Ordens, que se não reuniam havia mais de um século, não tinham a sedução das ideias novas, nem o prestígio das instituições respeitáveis; a sua autoridade morrera naquele dia, recordada por alguns, em que haviam sancionado a usurpação de D. Pedro II e aprovado o seu casamento com a cunhada, estando ainda vivo D. Afonso VI.

Portugal é, porém, uma nação de fraca memória política; por isso, mais do que aquela recordação, estimulava o partido liberal o amor da novidade. Pensava que a sua convocação seria anacrónica, e que « a mudança dos costumes e dos tempos trazia necessariamente consigo mudanças de formas; e que, uma vez quebrado o primitivo contrato pelos reis que o deviam manter, não havia já obrigação alguma por parte da Nação para aderir a ele, e podia a mesma Nação, por consequência, adotar outras quaisquer formas que quisesse. Além disso, nem a nobreza, nem o clero, já conservavam as mesmas prerrogativas que antes tinham como classes muito distintas e quase independentes do Estado; assim o que agora se precisava não era quem representasse a nobreza ou o clero, mas a Nação; porque as Cortes, hoje organizadas como em outro tempo o haviam sido, nem representariam a nobreza nem o clero, porque estes dois corpos já tinham perdido a hierarquia das classes distintas, e muito menos representaria a Nação, que nunca se deve considerar como um composto de classes, porém como em um composto de indivíduos. São estes em todas as sociedades bem organizadas, os que parcialmente devem ser protegidos na propriedade de suas pessoas e bens; são estes ainda os que parcialmente concorrem com suas pessoas e fazenda para a sustentação do Estado; logo são estes, isto é, logo são os indivíduos, e não as classes que podem e devem ser representados» (José Liberato Freire de Carvalho, Ensaio histórico-político, pp. 293-294).

O pleito pairava desde o dia da Revolução, e desceu ao primeiro plano das preocupações quando a Junta Preparatória das Cortes, pela portaria de 6 de Outubro, solicitou alvitres e opiniões.


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