1. Período de indecisão e triunfo da corrente regeneradora

O convite revelava a delicadeza do assunto. Os legalistas acudiram logo com a questão prévia de saber se a Junta tinha poderes para alterar a fórmula tradicional. Entendiam que a distinção das Três Ordens, se não era lei fundamental da monarquia, era, pelo menos, lei tradicional. Só a sua convocação daria legitimidade às novas Cortes, só estas podiam alterar aquela lei, e não o povo, nem a Junta: o povo, porque apenas podia exprimir o seu voto pelos procuradores, que formassem o terceiro estado; a Junta, porque não tinha poderes para modificar a Constituição da monarquia, pois se os tivesse podia decretar nova Constituição, tornando dispensável a convocação das Cortes.

Dias depois da expulsão de Beresford começou a propalar-se que a maioria dos indivíduos consultados pela Junta se pronunciara pela convocação das Três Ordens. O boato era verdadeiro, e quando constou que em 21 de Outubro a maioria dos sócios da Academia das Ciências havia adotado esta opinião e sugerido uma fórmula conciliatória da legalidade tradicional com as aspirações dos inovadores, a discussão, até então académica, invadiu a praça pública.

Entendiam os académicos ser lei constitucional a formação das Cortes pelas Três Ordens, mas que através dos tempos fora diversa a sua organização quanto ao número dos representantes de cada uma, assim como, depois de reunidas as Cortes, foram vários os modos de votação e deliberação, atuando umas vezes os Três Braços separadamente, outras em conjunto. Por isso, opinaram que «as Cortes se convocassem pelas Três Ordens; que a do clero fosse representada por todos os bispos e prelados com jurisdição ordinária, em número de vinte e três; a da nobreza pelos procuradores escolhidos por todas as classes dela, em número de trinta, o que se praticara entre nós em tempos mais antigos; a do povo pelos procuradores de todas as cidades, vilas e concelhos, escolhidos pelas câmaras, que depois, nas cabeças de comarca, nomeariam, conforme a população das mesmas comarcas, um número correspondente de representantes em Cortes, que todos eles fizessem a soma de cento e cinquenta. Deste modo vinham as Cortes a compor-se de duzentas pessoas, as quais deviam votar por indivíduos e não por classes, com o que vinha o terceiro estado a ter toda a preponderância no maior número dos votos e vinham os outros dois a conservar a que lhes dava a sua força moral, donde resultaria um justo e necessário equilíbrio entre todos» (Trigoso, Memórias).

 Dificilmente se podia excogitar uma fórmula de transação entre os partidos adversos mais hábil do que esta; porém o partido liberal notou, e com razão, que, na essência, ela conservava a estrutura social e política do antigo regime, e embora se não pudesse prever o desenrolar futuro dos acontecimentos numas Cortes em que o terceiro estado detinha maioria e as votações se fariam individualmente, os pressupostos ideológicos em que ela assentava tornavam-na inconciliável com os regeneradores, filhos espirituais de Rousseau e dos reformadores de Cádiz. O debate passou, assim, da antecâmara ministerial para os clubes políticos, dos pareceres académicos para a imprensa, dos gabinetes para a praça pública, ganhando em extensão, vigor e, porventura, alarido demagógico, o que perdia na compustura e ponderação hábil.

O Juiz do Povo, que tanta influência tivera na destituição dos Governadores do Reino, ergueu a primeira voz de protesto. Em 25 de Outubro convocou a Casa-dos-Vinte-e-Quatro, a qual resolveu significar à Junta que «a opinião e voto dos grémios e povo era de que os membros para representarem em Cortes fossem escolhidos indistintamente da massa geral da Nação, seguindo-se para se obter este fim a mesma forma determinada na digna constituição espanhola, alterando-se tão-somente naquela parte que diz respeito à diferença da população... devendo ser desprezada toda a ideia de uma convocação das Cortes da maneira antigamente praticada, do que só resultaria a inutilidade das honrosas fadigas gloriosamente sofridas, para se conseguir uma livre constituição adaptada às puras ideias do tempo e às nossas necessidades, e que todos os deputados rogavam à mui digna Junta tomasse muito em séria consideração o presente voto, como representativo de um muito considerável número de cidadãos empregados nos grémios, e de um povo de uma capital amante do soberano e da pátria, que desejam aproveite com vantagem o futuro e feliz momento, e o meio para a sua ditosa regeneração política».

A substância deste voto foi comunicada no mesmo dia, 28 de Outubro, ao comandante em chefe Gaspar Teixeira, a quem o Juiz do Povo pedia apoio, no que prestaria «à liberdade nacional mais um serviço que somente o céu poderá remunerar». Era o convite a novo pronunciamento; no dia seguinte, a oficialidade dos regimentos de cavalaria 1 e 4, infantaria 1, 4, 10 e 16, caçadores 5, artilharia 1, guarda real da polícia e batalhão dos artífices engenheiros, instruía a Junta que considerasse «o voto expressado na representação do povo como o seu próprio, pois que acham que o sobredito método de convocação é o único que nos pode conduzir à posse de uma constituição liberal».

Ao parecer da Academia, corporação então respeitada como nenhuma outra, pelo prestígio dos seus membros, pela admirável ascendência intelectual que granjeara, pela seriedade dos seus trabalhos, opunham-se, assim, outros pareceres, menos ponderados mas mais poderosos pelo número e sobretudo pela força. Não fora o Juiz do Povo arauto das reclamações populares, e não pertencia ao exército a glória de ter iniciado o caminho da «regeneração»? Não defendia a maior parte da imprensa política, o Portugal Constitucional, o Liberal, o Astro da Lusitânia, o Pregoeiro Lusitano, a necessidade de profundas reformas, e não combatia as velhas Cortes por incompatíveis com as luzes do século e a nova orgânica do Estado?

O governo não podia, pois, hesitar; por um lado, alguns dos seus membros sobre quem recaíam particularmente as responsabilidades da nova lei eleitoral, como Fernandes Tomás, ministro do Reino, e Borges Carneiro, secretário, haviam já comprometido a opinião; por outro, os tradicionalistas e os hesitantes tinham de se confessar vencidos perante a exibição da força militar e o clamor da opinião jornalística. A Revolução iria seguir o seu curso...             O governo começou por se dirigir ao país, mediante um manifesto no qual expunha as suas ideias, e dias depois publicou as Instruções eleitorais. Os dois documentos têm a data de 31 de Outubro; mas as Instruções só foram publicadas em 10 de Novembro.

O manifesto exortava os portugueses ao cumprimento do dever eleitoral, enaltecia a futura Constituição, «qual a natureza a copiaria do original eterno, cujos caracteres não é dado à tirania apagar, nem à prescrição dos abusos desfazer, nem à versatilidade das idades alterar»; criticava o antigo regime das Cortes como «antiquadas formas do feudalismo e um vão simulacro de Cortes», e anunciava um sistema eleitoral que, «representando a verdadeira e legítima representação nacional, simplificava o sistema e economizava o tempo», e seria aplicado em todo o território português, porque «extinto para sempre o injurioso apelido de colónias, não queremos todos outro nome que o título generoso de concidadãos da mesma pátria».


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