1. Período de indecisão e triunfo da corrente regeneradora

A elevação patriótica deste documento, assim como a ideologia política que o inspirava, colhida a um tempo na tradição nacional e no Contrato Social, de Rousseau, notadamente quando recordava aos portugueses que a Revolução os voltara «momentaneamente, por uma ficção política, para o estado de natureza», não provia às reivindicações formuladas. Vago e impreciso, adiava para as instruções eleitorais o esclarecimento da opinião.

O adiamento, porém, tornara-se suspeito, e quando em 10 de Novembro se conheceu a resolução governamental, a minoria de exaltados, que em todos os tempos comandou os movimentos políticos e se considerou detentora da pureza doutrinária e dos pergaminhos revolucionários, sentiu-se lograda.

As Instruções, cuja remessa aos magistrados presidentes das eleições parece ter precedido de dois dias a respetiva publicação no Diário do Governo e na Gazeta de Lisboa — o que revela as dificuldades e receios do governo e os seus propósitos de colocar a opinião lisbonense perante uma situação de facto, já conhecida da província —, concediam o direito de voto a todo o chefe de família. O governo iniciava, portanto, uma era nova na história da representação política; as eleições seriam democráticas, proscrevendo-se o antigo sistema e não se importando o regime censitário, que a lei francesa de 5 de Fevereiro de 1817 instaurara e iria dominar a política gaulesa durante trinta anos e servir de norma ao nosso constitucionalismo restaurado em 1834 (Decreto de 3 de Junho de 1834).

As eleições seriam indiretas, isto é em dois graus. As primeiras eleições elegiam os eleitores e celebrar-se-iam na câmara, cabeça do respetivo concelho, sob a presidência do juiz de fora ou do juiz ordinário e com a assistência dos vereadores, salvo em Lisboa, onde se fariam por freguesias e no templo mais cómodo, sob a presidência do ministro do bairro e com a assistência do pároco.

Nestas eleições o voto era público, isto é, declarava-se em voz alta o nome da pessoa em quem se votava, ficando eleito quem tivesse a seu favor a pluralidade de votos, decidindo a sorte no caso de empate.

Não havia recenseamento nem a estreiteza do tempo consentia que se organizasse; por isso se resolveu empiricamente que os concelhos até 600 fogos elegessem um eleitor; os de 1200, dois eleitores, com declaração de que não chegando a povoação a 1200, mas excedendo 900, dariam dois eleitores; da mesma forma, se não chegassem a 1800, mas excedessem a 1500, dariam três eleitores; e assim em diante na mesma proporção.

Eleitos os eleitores, procedia-se à eleição dos deputados. Os eleitores deviam comparecer na casa da câmara, cabeça da respetiva comarca, e aí, sob a presidência do corregedor, do provedor ou do juiz de fora respetivo, salvo em Lisboa e Porto, onde presidiam magistrados expressamente nomeados, se procederia à eleição. O voto dos eleitores seria secreto, isto é, escrito e lançado pelo eleitor na urna. O deputado devia reunir a maior soma possível de conhecimentos científicos, ter firmeza de carácter, religião e amor da Pátria, possuir meios honestos de subsistência, e ser natural ou domiciliado na comarca respetiva, e não os havendo nela poderiam ser eleitos indivíduos de quaisquer outras comarcas. Eram elegíveis deputados os votantes, ou chefes de família, que reunissem estas qualidades, excluindo-se do direito de voto os regulares das ordens monásticas e mendicantes, os estrangeiros não naturalizados, os incapazes natural ou legalmente, e os criados de servir não sendo chefes de família. Como é óbvio, concedia-se o voto aos analfabetos; por isso, era pública a declaração de voto nas eleições do primeiro grau, mas partindo o legislador do princípio de que seriam eleitas para eleitores pessoas de alguma ilustração, determinou que a eleição do segundo grau, ou de deputados, fosse secreta.

Com a eleição dos deputados realizava-se simultaneamente a dos seus substitutos. Os deputados venceriam a ajuda de custo diária de 4800 réis, contada desde o dia em que se deslocassem para Lisboa; e para que as Cortes se reunissem infalivelmente no dia 6 de Janeiro de 1821, marcava-se a eleição de eleitores para 26 de Novembro e a de deputados para 3 de Dezembro.

Tal é a súmula da primeira lei eleitoral portuguesa, no sentido moderno da palavra. É uma lei honrada; devolvia à Nação a plenitude dos seus foros, fiava da integridade da magistratura a pureza do escrutínio e não coagia o eleitor com aparatos coercivos de ordem pública. As suas deficiências e imperfeições técnicas são evidentes. A pressão das circunstâncias, a ausência de um censo atualizado, a qual determinou que se recorresse ao censo de 1801, a inexperiência política, explicam-nas em parte; mas, explicáveis ou não, como que se apagam perante o nobre propósito de poupar Portugal ao vexame de importar a Constituição de Cádiz, como haviam solicitado, levianamente e com indigência intelectual, o Juiz do Povo e o exército. Esta é a sua glória; politicamente, porém, foi o seu escolho.

Os grémios e o exército, que em 28 e 29 de Outubro se haviam manifestado no sentido de se convocarem as Cortes «pelo modo determinado na Constituição espanhola», reputaram-se publicamente desconsiderados.

Desde a Guerra Peninsular havia rivalidade surda entre a magistratura e o exército, originada talvez como supõe Soriano, «das dependências que os militares por então tiveram dos magistrados, quanto a aboletamentos, meios de transporte, etc.». O antagonismo não cessou com a Revolução; pelo contrário, recrudesceu.

Cada uma destas classes aspirava ao domínio dos acontecimentos, chegando a fação mais exaltadamente revolucionária da oficialidade a declarar que o exército assumira pelos seus atos «a soberania nacional, e lhe competia mantê-la enquanto se não reunissem as Cortes constituintes» (Sá Nogueira).

Os magistrados e civilistas do governo não partilhavam esta opinião, que Fernandes Tomás condenou no Soberano Congresso, em 8 de Maio de 1821, por ser «inteiramente destrutiva de toda a ordem social», nem as Instruções a sancionaram indiretamente, aplicando a lei espanhola.

Cometendo vagamente aos magistrados a presidência dos atos eleitorais, julgaram os oficiais exaltados que os deputados sairiam da classe dos becas ou rábulas, com exclusão dos militares; e não designando taxativamente as autoridades que deveriam presidir a esses atos, pois numas partes confiava-as aos corregedores, noutras aos provedores e noutras ainda aos juízes de fora, parecia-lhes que os governantes procuravam influir nas eleições convertendo os presidentes em seus mandatários. Na designação dos presidentes viam, pois, o arbítrio e o sinal indicativo de umas Cortes futuras constituídas por servos do poder. Reacendeu-se então o velho antagonismo da farda e da toga e a praça pública foi teatro de um pronunciamento militar, conhecido pela martinhada por haver eclodido no dia de São Martinho.

Uma vez mais foram o Juiz do Povo e o seu escrivão os arautos, ou antes os instrumentos. Com manifesta rebeldia dirigiram no dia 11 uma representação ao comandante do exército, Gaspar Teixeira, na qual, afirmando o descontentamento do povo pelo procedimento do governo, o convidavam a reunir o exército e a «proclamar a constituição espanhola, a qual, sendo modificada pelas Cortes convocadas à maneira espanhola, se adote e aproprie aos usos, costumes e terreno de Portugal, sem que lhe alterem o seu essencial e as ideias liberais que ela contém».


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