1. Período de indecisão e triunfo da corrente regeneradora

Gaspar Teixeira e Sebastião Cabreira, no próprio dia em que os ministros se demitiam, julgaram necessário proclamar ao povo de Lisboa a sinceridade das suas intenções; mas dois dias depois, Gaspar Teixeira, já comandante em chefe do exército, ordenava aos comandantes de todos os corpos que recebessem «o juramento dos seus regimentos à Constituição que no dia 11 eles mesmos comandantes juraram no Palácio do Governo». Por um lado, apaziguava a população civil, por outro robustecia o partido militar, vinculando pelo juramento o exército; porém, os seus intentos frustraram-se, porque no dia 16 o brigadeiro Sepúlveda recebia um ofício, assinado por numerosos indivíduos de diversas classes, no qual lhe rogavam que restituísse ao país «a antiga paz, desafrontando a liberdade que se acha oprimida».

Viu-se então no horizonte a luta fratricida, mas a voz do bom senso, não sabemos por que sortilégio, impôs-se, e no dia imediato, 17, reunia-se no quartel-general um conselho militar, que resolveu apresentar ao governo as seguintes resoluções;

1.°) «O estado atual da capital e a opinião pública demandam que novamente entrem no governo os deputados que pediram a sua demissão, para o que não concorreu o exército, pois que o exército com a Nação o reconheceu até à instalação das Cortes»;

2.°) «Que as eleições para a escolha dos deputados em Cortes sejam feitas pelo mesmo sistema que na Constituição espanhola é prescrito, por ser a opinião geral da Nação e do exército, único motivo que deu ocasião à parada geral do dia 11 de Novembro de 1820».

3.°) «Que tudo o mais que se determina na Constituição espanhola se não possa pôr em prática enquanto não se ajuntar o congresso dos deputados de cortes e adotem a base dela, fazendo as mais alterações que julgarem convenientes, sendo igualmente liberais».

A nova manifestação das espadas, cuja índole era evidentemente contrária a certas consequências políticas da martinhada e à qual aderiram cinquenta oficiais superiores e comandantes de corpos, despertou entusiasmo popular e determinou logicamente novo rumo aos acontecimentos.

Os ministros que se haviam demitido foram logo convidados pelos seus colegas a regressarem ao governo, retirando-se os que os tinham substituído; Gaspar Teixeira resignou o cargo de comandante em chefe do exército, para ocupar a inofensiva presidência da comissão militar encarregada da distribuição das medalhas de campanha; e António da Silveira — que depois de ter pedido a demissão, no dia 16, das funções que exercia no governo por sofrer «de febre nervosa» e carecer de recuperar «a saúde perdida», manifestara no dia 20 o propósito de as retomar por «ter a sua saúde melhorado muito desde o dia 17» — foi intimado pelo governo, por ofício assinado por Fernandes Tomás, a sair da capital no prazo de duas horas e a residir na sua quinta de Canelas, na comarca de Vila Real, «não demorando em parte alguma senão aquele tempo que for necessário para sua comodidade, em jornadas regulares, participando, pela secretaria competente, a sua chegada, e ficando na inteligência de que, sem licença da Junta, não deve sair mais da mesma quinta».

Tal foi o desfecho imediato da martinhada. Em Lisboa, a população expandiu o regozijo; em Coimbra, a mocidade promissora de Garrett, de Castilho e de outros estudantes, saudou nos outeiros poéticos da Sala dos Capelos, em 21 e 22 de Novembro, a nova vitória da liberdade, e por todo o país o governo procurou incutir o sentimento da tranquilidade assegurando-lhe a adesão do exército, a confiança do povo e o solene propósito de manter com «inviolável fidelidade os foros sagrados da justiça e da virtude, e de derramar, se necessário for, o seu sangue em defesa da pátria, do rei, da constituição e da pública liberdade».

Com vocabulário novo, o governo afirmava, afinal, deveres das situações políticas de todos os tempos; só o derradeiro período da sua proclamação concretizava alguns desígnios, que definiam um programa político. De 24 de Agosto a 18 de Novembro, a finalidade da «regeneração nacional» flutuou sem rumo certo, ao embate de correntes diversas e mais ou menos adversas, mas após a reação contra a martinhada, vencida a corrente tradicionalista e autoritária, o país ficou sabendo para onde o conduzia a Junta Provisional do Supremo Governo do Reino. Desde então, sem sombra de dúvida, toda a gente podia vaticinar que o regime político a instaurar pelas Cortes seria diverso do da antiga monarquia dos Três Estados, e que a Constituição de Cádiz, de 19 de Março de 1812, embora se houvessem malogrado as tentativas do seu juramento, influenciaria poderosamente os dirigentes revolucionários. Apesar do malogro, o pronunciamento da martinhada não foi apenas um episódio turbulento; da convulsão que desencadeou deixou um séquito de recriminações e ressentimentos, que ficaram aguardando oportunidade para eclodirem, e que a Vila francada mais tarde satisfez, e legou politicamente a alteração das instruções eleitorais, ou antes uma nova lei eleitoral baseada no sistema da Constituição de Cádiz.

As novas instruções, datadas de 22 de Novembro, eram cópia dos artigos 27 a 103 da Constituição espanhola; apenas acrescentavam, em caracteres itálicos e em relação a algumas disposições, certas modificações reputadas necessárias para a respetiva aplicação em Portugal, e sete artigos adicionais para as eleições de Lisboa e seu termo.

Pela nova lei, deveriam formar-se juntas eleitorais de freguesias, de comarcas e de províncias. As juntas de freguesia elegiam por cada 200 fogos um eleitor de comarca, e nestas eleições o sufrágio era universal, pois tinham voto todos os cidadãos com vinte e um anos completos, que exercessem na respetiva povoação emprego, ofício ou ocupação útil.

Para evitar que as povoações de menos de 200 fogos ficassem sem representação, determinou-se que os lugares de 20 fogos elegeriam um compromissário, os de 30 a 40, dois, de 50 a 60, três, e assim sucessivamente; cada grupo de 11, ou pelo menos de 9 compromissários elegeriam um eleitor de paróquia. Os eleitores de paróquia, por seu turno, reunindo-se na cabeça da comarca, elegeriam os eleitores de comarca, cujo número total deveria ser o triplo dos deputados a eleger, e finalmente os eleitores de comarca, reunindo-se na cabeça da província, elegeriam os deputados a Cortes, na razão de um por trinta mil almas.

As eleições deveriam realizar-se, respetivamente, as de paróquia no segundo domingo de Dezembro, as de comarca no terceiro domingo e as de província no quarto, por forma que os deputados eleitos se reunissem em Lisboa no dia 6 de Janeiro de 1821, para se inaugurarem as Cortes.

Deixando de lado a apreciação deste sistema e o seu confronto com o anterior, baste-nos notar que, quaisquer que fossem os seus defeitos, ele trouxe a acalmia das paixões e permitiu que as eleições se realizassem com absoluto sossego e, ao que parece, com honestidade.

Com as eleições iniciou-se uma era nova na história política portuguesa; antes, porém, de a analisarmos cumpre formar uma ideia de conjunto acerca da irradiação do movimento revolucionário por todo o território português e da reação que ele suscitou na política exterior.


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