2. Irradiação do movimento revolucionário

O Governo saído do acordo de Alcobaça, a despeito da martinhada, que não logrou destruir-lhe as características, foi obedecido no Continente e durou até à reunião das Cortes. Simples depositário interino do poder, não foi ditatorial, nem mesmo um governo revolucionário no sentido recente da palavra, que por meio de decretos-leis modificasse a organização tradicional do Estado e procurasse criar novas condições à vida pública e à atividade dos indivíduos. A sua missão fundamental consistiu em preparar o ato eleitoral e convocar as Cortes, das quais, então, tudo se fiou e para as quais tudo se adiou.            

O respeito escrupuloso, quase místico, do dogma da soberania nacional não consentia outro procedimento político. Por isso, a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino não legislou; a sua ação limitou-se à convocação das Cortes, à manutenção da ordem pública e aos simples atos de administração corrente. Todos os ministros, mais ou menos, estavam vinculados aos mesmos compromissos e obedeciam ao mesmo pensamento político, e se um se destacou esse foi sem dúvida Fernandes Tomás, pela intransigência coerente dos princípios e pelo zelo de administrador, pois como ministro da Fazenda providenciou no sentido de se inventariar e liquidar a dívida pública, melhorar a arrecadação das receitas do Estado e proteger a agricultura. Assim, não é nos ministérios, mas no Soberano Congresso, que deve procurar-se a obra reformadora da Revolução de 1820. Antes, porém, de a estudarmos, atentemos na propagação do movimento revolucionário pelo território português de todas as latitudes e na oposição que encontrou na nossa representação diplomática.

O Continente, embora aqui e além houvesse mais passividade que entusiasmo, o qual se manifestou sobretudo nos grandes aglomerados, acatou os acontecimentos e obedeceu à Junta Provisional e às Cortes; nas Ilhas e nas Províncias ultramarinas, porém, o poder nascente encontrou obstáculos e por vezes resistência.

Das Ilhas, foi a Madeira a primeira a manifestar-se, e por forma digna.

O governador, ao ter conhecimento das proclamações revolucionárias e das circulares da Junta convidando as autoridades à obediência, aconselhado talvez por Palmela, que seguia viagem para o Rio, resolveu aguardar as ordens de D. João VI. Era o seu dever, e o dever tornou-se-lhe melindroso e grave quando no dia 28 de Janeiro de 1821 o povo, junto da Fortaleza de São Lourenço, vitoriava o Supremo Governo e as Cortes, as autoridades militares, convocadas a conselho, exprimiam o parecer que não deviam resistir, pelo estado da opinião, e uma comissão constituída pelo sacerdote Gregório Nazianzeno Medina Vasconcelos, Diogo Dias de Ornelas e Vasconcelos, capitão de milícias, de mais capitães do mesmo corpo e de um negociante do Funchal, lhe entregava uma representação, assinada por 121 pessoas das mais consideradas. Afirmavam os madeirenses não quererem a alteração no governo e que os seus votos consistiam em unirem a sua causa à de Portugal, jurarem a Constituição que as Cortes fizessem e elegerem deputados. «Tomamos a determinada resolução de sermos o órgão de nossos compatriotas», diziam, «não tendo outro objeto em vista que assegurarmos a V. Ex. a do voto público, e prevenir que este se não manifeste por um modo desagradável, de que já se tem dado não equívocos sintomas, ponderando a V. Ex. a que o mais sagrado dever do seu ministério será salvar esta ilha da desordem que pode atrair sobre ela os maiores males, poupando-lhe o que poderá ser crime, por se lhe negar a carreira da virtude».

O governador não resistiu; e, homem leal e amante da paz, abdicou do seu cargo perante a Câmara, que havia convocado, merecendo a sua atitude aplauso unânime.

Nos Açores, manifestou-se grande oposição, tanto das autoridades como da grande maioria da população, cuja índole tradicionalista recebeu com desconfiança as novas do Continente; só os deportados da setembrizada e a roda que com eles convivia rejubilaram e promoveram a instauração da nova ordem política. Sem êxito, porém.

Quando eclodiu a Revolução do Porto, o general Francisco António de Araújo ocupava interinamente a capitania dos Açores, com sede na Terceira, aguardando a vinda do seu sucessor, o general Francisco de Borja Garção Stockler, nomeado em princípios de 1820. A interinidade da sua situação e, porventura, os escrúpulos de consciência ditaram ao general Araújo a abstenção perante os acontecimentos, no que aliás foi aconselhado pelo Dr. Vicente José Ferreira Cardoso, setembrizado de prestígio. Legando ao seu sucessor o encargo de prestar obediência à Junta, Araújo logrou manter a capitania indiferente aos acontecimentos.

Respeitadores da deliberação de Araújo, os liberais, no entanto, confiavam na vinda de Stockler; atribuíam-se-lhe ideias liberais, e a confirmação da sua nomeação pela Junta parecia apresentá-lo como funcionário de confiança. À indiferença sucederia a adesão, pensavam, mas a ilusão logo se desfez quando Stcokler, claramente e com mão forte, revelou o desígnio de combater «essa chamada Junta Suprema do Governo Provisional de Portugal». Stockler ocupou a capitania em fins de 1820, isto é, a breve prazo das eleições e da reunião das Cortes, numa ocasião em que o bom senso e a tranquilidade dos povos aconselhavam, pelo menos, a expectativa prudente perante os acontecimentos, que a vontade popular consagrara e pouco depois o rei sancionou. Obstinado e enérgico, Stockler fez da sua capitania o baluarte da reação: organizou a espionagem, promoveu devassas, proibiu a publicação de jornais, ordenou prisões por motivos políticos, determinou a visita dos navios vindos do Continente e a apreensão dos papéis e livros que trouxessem, impôs aos juízes o não cumprimento das sentenças da Relação de Lisboa e vedou-lhes que fizessem agravos e apelações dos tribunais dos Açores. Pequeno estado no Estado, a capitania dos Açores foi a modesta Vendeia do vintismo.

Ao ataque, os liberais responderam com a conspiração e com a revolta, primeiro em São Miguel, mais tarde na Terceira.

Em São Miguel, onde havia descontentamento pela sujeição ao governo da Terceira, captaram a população arvorando a bandeira da autonomia, e no 1.0 de Março de 1821 conseguiram deflagrar um movimento revolucionário, que destituiu o governador Sebastião José de Arriaga Brum da Silveira, impôs um governo interino, presidido por André da Ponte Quental e Sousa, o qual prestou obediência ao governo do Continente e logrou que o Soberano Congresso votasse em 12 de Dezembro de 1821 a reorganização administrativa dos Açores, repartindo as ilhas por três comarcas, cada uma com seu governo.

Três dias depois dos acontecimentos, em 24 de Março, chegou a notícia à Terceira, e logo os deportados da setembrizada, que constituíam o principal núcleo liberal, julgaram propícia a revolta, tanto mais que Stockler decidira tomar medidas preventivas, vigiando-os e intimando o seu antecessor na capitania, o general Francisco António de Araújo, a sair de Angra. Para os liberais da Terceira chegara o momento decisivo: ou agiam ou seriam reduzidos à impotência. Optaram pela ação, entregando a chefia militar do movimento ao general Araújo, que dias depois, no 1.0 de Abril, conseguiu apoderar-se, de surpresa, do castelo de São João Baptista, onde proclamou na presença da tropa, que se havia rendido, a obediência às Cortes e à Constituição que elas fizessem.


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