2. Irradiação do movimento revolucionário

Destituído Stockler, cuidaram os revolucionários na formação do governo interino e supremo dos Açores, para o qual convidaram pessoas de respeitabilidade, entre elas o bispo, D. Frei Manuel Nicolau, que se escusou.

Stockler, porém, não se deu por vencido, e procurou imediatamente recuperar o castelo com o auxílio de uma patrulha de milicianos. Recebido a tiro, retirou-se para as Covas, próximo da Vila da Praia, e aqui tentou organizar uma coluna; os oficiais, porém, por unanimidade, resolveram capitular e Stockler teve de reconhecer a inutilidade da tentativa, que não dos seus desígnios contrarrevolucionários.

Regressou então a Angra, cuja população o recebeu com simpatia, se não com carinho, vendo no vencido o defensor intemerato do trono e do altar. As manifestações, que para além do carinho significavam também hostilidade ao general Araújo, que era detestado, incitaram-no a tentar novo golpe, com o apoio do bispo. Um e outro recrutaram «populares para efetuarem um contramovimento; subornaram soldados, e, excitados os ânimos do povo ignorante e fanático, no dia 3 de Abril, astuciosamente, pelas dez horas da noite, o bispo compareceu em casa do capitão Padinha, onde sabia acharem-se reunidos os membros do governo interino, deixando na rua emboscada uma escolta de soldados, acompanhados de muitos populares. Imediatamente à entrada do bispo na sala em que estavam os governadores ouviu-se um grande clamor da multidão, lançando gritos de morte e extermínio O general Araújo corre a ver o que era; chega à janela e nesta ocasião uma descarga de mosqueteria cai sobre a casa. Uma bala atinge o general, mas não o mata, apenas o fere no pescoço. Neste estado ainda tenta falar aos amotinados, porém uma nova descarga fá-lo cair para nunca mais se levantar.

«O bispo então assoma à janela e brada: — Sossegai, morreu o tirano! Aqui tendes as chaves.

«Imediatamente o bando de revoltosos penetra no interior da casa a fim de prender ou matar os membros do governo interino... Arrastaram para a rua o cadáver do pobre general Araújo. Tiraram-lhe a farda e roupas brancas e, completamente nu, espetaram-lhe as baionetas para com ele assim percorrerem as ruas, aos gritos estridentes de "Viva quem matou o porco! Viva quem matou o burro!" A multidão escarrou-lhe na cara, espetou-lhe paus pela boca. Depois foi atirado para o canto duma viela imunda, onde jazeu insepulto durante três dias. Ao fim deste tempo a piedade de Manuel José Coelho fê-lo sepultar na igreja de São João Baptista. O seu cadáver foi transportado por grilhetas descalços e apenas acompanhado por um capelão. Durante dias a multidão tripudiou livremente. Os soldados invadiam a casa das pessoas mais afetas aos constitucionais e depois de as arrastarem pelos cabelos e barbas, lançavam-nas, moídas de pancadas, nas prisões infectas. Incomunicáveis, os presos sofriam os mais cruéis vexames da soldadesca. Até no alimento lhe deitavam excremento! Os seus bens foram confiscados, ficando na miséria muitas famílias entre as quais a do general Araújo, a qual após o assassinato do seu chefe havia sido presa. Assim se abria nos Açores, com perseguições, vinganças e sangue, o longo período das lutas liberais, que iam ser logicamente simbolizadas pelos seus chefes supremos, D. Miguel e D. Pedro — dois irmãos.» (F. A.M. de Faria e Maia, Um Deportado da «Amazonas»).

Instalado de novo na capitania, Stockler  diligenciou impossibilitar qualquer tentativa liberal, chegando a pensar na deportação dos constitucionais para o Brasil. O projeto, porém, não foi avante, nem o seu governo foi longo, pois durou apenas de 9 de Abril a 15 de Maio.

É que no dia 13 deste mês fundeara em Angra a fragata Pérola, trazendo a notícia oficial do juramento de D. João VI à Constituição que as Cortes votassem, e as ordens governamentais no sentido de serem libertados os presos e remetidos para Lisboa, sob prisão, Stockler e o bispo. Stockler resistiu ainda, passivamente, dois dias; mas no dia 15 foi ele próprio quem instalou o governo interino e proferiu o discurso gratulatório, saudando «o dia da concórdia» e «cheio de júbilo e penetrado do respeito devido a um ato tão venerado», jurou, antes de mais ninguém, «obediência firme e constante às bases da Constituição portuguesa, à Constituição mesma, e às autoridades pelas Cortes constituídas».

Stockler capitulara; o que a força não logrou, obteve-o a autoridade real. Por isso, não vemos, como o comum dos historiadores, versatilidade e doblez no seu procedimento.

Formado na moral do antigo regime, para ele o patriotismo confundia-se com a obediência leal ao rei, o interesse dos povos com o decoro da coroa; e porque admitia que a soberania residia essencialmente na vontade real, só esta o poderia desobrigar dos juramentos prestados.

Politicamente, a sua intransigência foi calamitosa, se não sinistra; moralmente, na medida em que é possível julgar as ações, coerente. Por isso, ele conquistou o respeito dos angrenses, por demais hostis às inovações, e legou à posteridade grave exemplo de reflexão, tanto mais que durante a Vila-Francada (1823) defendeu, aliás sem êxito, a necessidade de uma constituição moderada, outorgada pelo monarca.

Ato contínuo ao juramento de Stockler surgiu uma representação dirigida ao Congresso, logo coberta de assinaturas, na qual o povo e a tropa solicitavam que ele e o bispo ficassem adjuntos ao governo interino da capitania. Assim se fez, e o comandante da fragata regressou a Lisboa trazendo em vez dos presos a honrosa representação. O Congresso, porém, recebeu com indignação o pedido e, por proposta de uma comissão especialmente nomeada, resolveu que Stockler e o bispo fossem destituídos, se procedesse à devassa dos seus atos e se anulassem as prisões, demissões e nomeações feitas pelo capitão-general.

O governo interino demitiu-se coletivamente, entrando para o novo governo as mesmas individualidades do anterior, salvo Stockler, o bispo e o coronel Paula, muito afeto àquele, e que foi substituído pelo brigadeiro Brito.

A opinião dos angrenses, contudo, não mudou, e sob as autoridades constitucionais, manteve a intransigência.

Nada revela tão claramente os seus sentimentos como a proclamação que o novo governo lhes dirigiu em 2 de Janeiro de 1822, colocando-os na alternativa de escolherem «a emenda, ou o castigo». Advertindo-os da insensatez de quererem fazer de «um punhado de loucos», num «pequeno torrão de terra, cercado pelo vasto oceano», o baluarte contra «a ordem estabelecida», perguntava-lhes: «Quereis que um corpo de tropas invista esta desgraçada ilha para vos punir, e que então venha a pagar convosco o justo, o inocente? Quereis que se vos decrete o abandono, a execração, como povo, que passa como rebelde aos olhos dos mais portugueses, e que, ficando esta ilha riscada do catálogo das possessões portuguesas, se entregue à discrição de qualquer outra nação, que a queira ocupar? Para vós a natural demora de algum navio de Lisboa é logo um indício seguro de que exércitos russos ou austríacos invadiram Portugal, ou de que a guerra civil tem devorado a mãe-pátria; então o prazer se pinta em vossos rostos, e vossas línguas vociferam as mais cruéis vinganças, desejando que se repitam as cenas de horror e sangue, que aplaudistes em Abril do ano passado, e que foram a vossa eterna vergonha».

A opinião influente dos morgados e a longanimidade do governo interino não puderam impedir que Stockler e o bispo partissem para Lisboa e que o Congresso resolvesse, em sessão de 29 de Agosto, que o general fosse encarcerado na Torre de São Julião, onde aguardaria o resultado da sindicância e a sentença do processo.


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