2. Irradiação do movimento revolucionário

Palmela, porém, insistia e confiava na efetivação do seu plano, porque dias depois, em 22 de Fevereiro, dirigia ao rei o projeto das bases fundamentais da Carta Constitucional, «com as últimas emendas que me ocorreram e que julgo essenciais», o qual a seu ver constituía um bloco, não admitindo emendas nem supressões, e cujos princípios capitais eram:

«1.°) O poder executivo residirá indiviso na pessoa inviolável d'El-Rei.

«2.°) O poder legislativo será exercido coletivamente por El-Rei e pelas Cortes, divididas em duas Câmaras.

«3.°) O poder judicial será administrado publicamente por tribunais independentes e inamovíveis, em nome d'El-Rei.

«4.°) A liberdade individual, a segurança da propriedade e a liberdade de imprensa; a igualdade da repartição dos impostos sem distinção de privilégios, nem de classes; a responsabilidade dos ministros e dos empregados do governo; a publicidade da administração das rendas do Estado — serão garantidas para sempre e desenvolvidas pelas leis da Monarquia.»

«Sobre estas bases por mim outorgadas se reformará em Cortes a Constituição dos Reinos de Portugal e Algarves, a qual me será transmitida pelo Príncipe Real, a fim de receber, sendo por mim aprovada, a minha Real Sanção, e para se adaptar a Constituição que se há-de formar sobre as mencionadas bases, à povoação, localidade e demais circunstâncias do Reino do Brasil, assim como das Ilhas e domínios Ultramarinos, que merecem a minha Real contemplação e paternal cuidado: Hei por conveniente mandar convocar nesta capital uma Junta, composta de Procuradores nomeados pelas Câmaras das cidades e vilas principais do Reino do Brasil, Ilhas e Domínios ultramarinos, para que reunida aqui o mais prontamente que for possível, debaixo da presidência da pessoa que eu houver por bem escolher, proponha o modo mais conveniente de dar a possível unidade ao sistema constitucional de toda a Monarquia, aplicando a este Reino e mais domínios da Coroa portuguesa as referidas bases por mim a todos os meus povos concedidas; e proponha igualmente quaisquer melhoramentos que parecerem conducentes ao bem geral destes Estados. E para acelerar estes trabalhos, hei outrossim por bem criar desde já uma Comissão, que entrará imediatamente em exercício, composta de pessoas residentes nesta capital, e por mim nomeadas, afim de preparar os assuntos de que se há-de ocupar a Junta dos Procuradores das Câmaras.»

Palmela admirava a Inglaterra, cujas instituições políticas, após a derrota de Napoleão, granjearam ascendência europeia, e queria que D. João VI, ao ritmo do século e de acordo com as sugestões do gabinete de Londres, as adaptasse às circunstâncias portuguesas, procedendo como Luís XVIII. O projeto malogrou-se; o insucesso, porém, não lhe diminui o mérito nem o relega para o campo da utopia, porque era legítimo prever, em face do respeito que os povos então dispensavam à Coroa, que ele pouparia a Portugal as convulsões políticas que o ensanguentaram e lhe consumiram energias vitais e morais.

A cegueira política e a falsa noção da autoridade mutilaram e desfiguraram o sagaz projeto; por conselho de Tomás António, de toda aquela peça coerente e íntegra D. João VI aproveitou apenas, no decreto de 23 de Fevereiro de 1821, a convocação da Junta de procuradores, a nomeação dos membros da comissão preparatória, sob a presidência do marquês de Alegrete, e a promessa da vinda do príncipe D. Pedro para Portugal, «munido da autoridade e instruções necessárias, para pôr logo em execução as medidas e providências que julgo convenientes, a fim de restabelecer a tranquilidade geral daquele reino, para ouvir as representações e queixas dos povos, e para estabelecer, as reformas e melhoramentos, e as leis que possam consolidar a constituição portuguesa; e tendo sempre por base a justiça e o bem da monarquia, procurar a estabilidade e prosperidade do reino unido, devendo ser-me transmitida pelo príncipe real a mesma constituição, a fim de receber, sendo por mim aprovada, a minha real sanção».

Este insensato decreto — que em vez de ir ao encontro dos acontecimentos, antecipando-se-lhes inteligentemente, parecia aguardar as situações irreparáveis, donde saem muitas vezes mal feridas a dignidade dos indivíduos e o decoro das instituições, cujas custas os povos pagam sempre com a frágil moeda da tranquilidade, quando não com a efusão do próprio sangue —, descontentou toda a gente.

Ofendia os brasileiros natos, porque equiparava o Brasil, onde residia a Corte, aos domínios ultramarinos e prometia-lhes apenas vagas reformas, medrosamente arriscadas; irritava os europeus, porque a convocação dos procuradores podia provocar a separação dos dois reinos, e assim lançava «na peleja uns e outros, e mais tarde uns contra os outros, por isso que os europeus queriam um Brasil reformado mas sujeito, ao passo que os brasileiros o queriam reformado e livre» (António Viana, A Emancipação do Brasil).

Palmela, humilhado e, porventura, convencido da inutilidade dos seus esforços e da proximidade de sucessos turbulentos e irreparáveis pediu a demissão após a publicação do decreto, isto é, no dia 24. D. João VI não o atendeu, e no dia seguinte, talvez para lhe significar consideração, talvez para acalmar a inquietação pública, incumbiu-o até de redigir um manifesto com as bases da Constituição. Era tarde; na madrugada de 26 eclodia no Rio a insurreição, e D. João VI careceu de recorrer à coragem de D. Pedro, afastado até então dos conselhos do governo, para serenar os ânimos, e teve de ceder às imposições da tropa e do povo amotinado: o juramento da Constituição que as Cortes de Lisboa fizessem, e a destituição do ministério, tido como reacionário. Desde este dia começou a desenrolar-se publicamente o processo da emancipação política do Brasil, aliás preparado de há muito na opinião, pela residência da Corte e pelo exemplo das colónias espanholas, e começou também um período novo nas relações da Coroa com a «regeneração», como gostavam de proclamar os vintistas.

Pelo simples facto do êxito e da adesão dos povos, a Revolução portuguesa emudecera as vozes dos interesses consolidados e das tradições enquistadas; no entanto, para além da veemência revolucionária, que ambicionava edificar uma sociedade nova, talvez de arquitetura lógica, mas sem a consistência da realidade, havia uma larga zona da opinião, que ao heroísmo do ímpeto regenerador e às apreensões dramáticas da temerária empresa antepunha o bom senso da conciliação oportunista. Assim Palmela, Silva Carvalho, Mouzinho da Silveira, Frei Francisco de São Luís, cuja moderação, a meio caminho do passado e do futuro, fiava do rei o estabelecimento do governo representativo, preferindo a outorga de uma Carta Constitucional aos debates, sempre apaixonados, de uma Constituição.

Sobre os largos alicerces desta opinião, a um tempo nacionais e internacionais, poderia D. João VI basear a política que Palmela lhe aconselhava; mas as hesitações régias e a inépcia de cegos conselheiros conduziram a Coroa à subalternidade dos símbolos decorativos, o país às convulsões, e os moderados a optarem entre a tranquilidade doméstica e o partido dos doutrinários — o único que abria o caminho das realizações e das lutas, às quais os devotados à causa pública dificilmente se esquivam, espere-os a glória ou o vitupério.


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