O pronunciamento do Rio pôs termo às divergências; jurando a Constituição, «tal qual se fizesse em Portugal pelas Cortes», e substituindo o ministério, D. João VI, sempre desconfiado e vacilante, passou a adotar a política do menor mal possível e inclinou a Coroa, até então símbolo da majestade, perante a nova realeza da soberania nacional. As consequências que daqui resultaram foram imensas. Vê-las-emos no decurso do trabalho; sigamos por agora a marcha dos acontecimentos na parte que diretamente interessa à política da metrópole, deixando de lado a sua repercussão na política brasileira.
Na sua primeira reunião, no dia seguinte ao do pronunciamento, o novo ministério que era constituído por Inácio da Costa Quintela (Reino), conde da Lousã (Fazenda), Joaquim José Monteiro Torres (Marinha) e Silvestre Pinheiro Ferreira (Guerra e Estrangeiros), figura respeitável cujas ideias eram garantia para os liberais —, ocupou-se da grave questão da residência de D. João VI. A maioria pronunciou-se pelo regresso imediato de toda a família real a Lisboa, embora constasse que D. João VI desejava permanecer no Rio e entregar a regência de Portugal a D. Pedro, imitando no lance a prevenção suspicaz do rei de Nápoles após a revolução de Julho de 1820. A notícia tornou-se pública em 28 de Fevereiro, e neste mesmo dia Silvestre Pinheiro Ferreira oficiou ao governo de Lisboa comunicando-lhe as resoluções régias de aprovar, «para ser aceite e executada em todos os Estados deste reino unido, a constituição que pelas Cortes atualmente convocadas nessa cidade for feita e aprovada», e de «partir para essa corte, com toda a sua real família, logo que sua alteza sereníssima a princesa real do reino unido, restabelecida do seu feliz parto, que se espera dentro em poucos dias, se ache em estado de empreender a viagem de mar».
A resolução do conselho de ministros fora lógica; se D. João VI jurara a Constituição que as Cortes ditassem, se de soberano absoluto transitava para monarca constitucional, reinando e não governando, o seu primeiro dever era residir próximo da sede das Cortes, para sancionar rapidamente as leis e não retardar o novo mecanismo legislativo. Mas, na política, a lógica nem sempre tem os admiráveis resultados que enobrecem o pensamento discursivo, porque os interesses e os sentimentos obedecem frequentemente a outras normas diversas das da ausência da contradição, pois como é óbvio a retirada da Corte afetava profundamente a economia, o orgulho e o decoro civil dos brasileiros, tornando-os receosos do regresso à menoridade colonial.
Não assistiu o Rio, volvidos dois meses, aos motins de 21 de Abril, tendentes a impor um governo provisório presidido por D. Pedro, e cuja sufocação apenas adiou por escasso tempo as irreprimíveis reivindicações e conquistas autonomistas, que o Brasil depois logrou? O ministério, porém, apercebeu-se das repercussões brasileiras da resolução régia, e tentou atenuá-las pelos decretos de 7 de Março, dos quais o primeiro determinou a permanência do príncipe real no Brasil com o encargo do «governo provisório deste reino, enquanto nele não se achar estabelecida a constituição geral da nação», e o segundo, a eleição de deputados brasileiros «na forma das instruções que no reino de Portugal se adotaram, passando sem demora a esta corte os que sucessivamente fossem nomeados nesta província, a fim de me poderem acompanhar os que chegarem antes da minha saída deste reino».
Enquanto no Brasil a notícia do regresso de D. João VI produzia a desolação e incitava os intentos separatistas, em Portugal, pelo contrário, derramou a alegria e desanuviou o horizonte político.
Lisboa soube a sensacional notícia em 26 de Março, por um suplemento ao Diário da Regência. As inquietações dissiparam-se; «Sua Majestade tinha acedido ao sistema parlamentar».
Até então o Soberano Congresso — designação que se dava às Cortes constituintes — adotara a tática de colocar D. João VI perante as situações de facto: legislara, elaborara as bases da Constituição, cujo juramento em breve iria impor; numa palavra, comprometera a Nação na nova ordem jurídica e política. Pairava, porém, a dúvida sobre o procedimento futuro de D. João VI; receava-se que por motu próprio ou por conselho de ministros como Tomás António e Linhares, havendo mesmo quem suspeitasse de Palmela, o monarca não pactuasse e até mesmo recorresse à sorte das armas ou à intervenção estrangeira.
Do Rio não vinham notícias, e as Cortes, em vez de aguardarem a palavra real, não tinham porventura procedido como se o rei fosse um mito? Os receios eram, pois, admissíveis, e — singular coincidência! — Manifestaram-se em voz alta, na tribuna parlamentar, na sessão de 21 de Março de 1821, nas vésperas da notícia. Um deputado informou que o Pará, no dia do Ano Novo, aderira à Revolução. Essa grande notícia não era oficial. Soubera-se em Lisboa por carta particular que um negociante da capital recebera de Liverpool. Abrira contudo a discussão pública do temeroso assunto, tanto mais que urgia responder à consulta do comandante da linha de defesa da margem esquerda do Tejo, o qual desejava saber «como havia de proceder-se se apresentassem mais de seis navios de guerra de nação estrangeira e «igualmente como devia receber-se Sua Majestade ou qualquer outra pessoa real».
Ferreira Borges observou que a ausência de notícias do Rio devia ser seriamente ponderada; Borges Carneiro acrescentou que o silêncio justificava os máximos cuidados e requeria ativas e prontas diligências e, rematando o debate, tornando-o mais grave, o deputado Lobo denunciou a existência na capital de «um clube, que esperava ocasião de uma contrarrevolução, e que era preciso tomar as convenientes precauções». As Cortes nomearam uma comissão para elaborar a resposta à consulta do comandante, fixando-lhe as diretivas, chegando mesmo a falar-se na aplicação da lei marcial, se a contrarrevolução «passasse a factos». O ambiente era, pois, de suspeição; o Soberano Congresso duvidava de D. João VI, e admitia a hipótese de ele aparecer inesperadamente no Tejo e de se suscitar um conflito, de consequências incalculáveis, entre o rei e a representação nacional.
Cinco dias depois, na sessão de 26, desanuviava-se o horizonte; o deputado Girão leu a carta que o Patriota, gazeta lisbonense, publicara, na qual se contava que «a Palmela fora devida a decisão d’el-rei, com grande contentamento do príncipe real», e para maior satisfação dos regeneradores, animando-os e convencendo-os de que eram colaboradores de uma nova ordem política europeia, o secretário dos Negócios Estrangeiros anunciou oficialmente que o Piemonte havia adotado a Constituição espanhola. Os aplausos «ao glorioso acontecimento» irromperam entusiasticamente, e dentre a multidão dos vivas destacou-se o de Borges Carneiro aos «discípulos da Espanha» — maneira indireta de dar morras à Santa Aliança, e — quem sabe? — De hostilizar ideologicamente Fernandes Tomás.
Quase simultaneamente, Lisboa soube das revoluções do Pará e do Piemonte, e da decisão de D. João VI; à solidariedade revolucionária do Brasil vinha juntar-se a sensação do próximo ocaso do império da Santa Aliança e do advento do reinado da soberania dos povos. A hora era de alegria, e a alegria volveu-se em apoteose no dia seguinte 27, quando o ministro da Marinha leu ao Congresso as notícias recém-chegadas de Pernambuco, que confirmavam a decisão régia. Os puros, doutrinários de alma republicana com adereços monárquicos, resmungavam com acrimónia que D. João VI empregasse as palavras aprovar, sancionar, vassalos e el-rei nosso senhor, incompatíveis com as bases juradas da Constituição e com a resolução do Congresso de 29 de Fevereiro de 1821, dispensando a sanção régia para a execução das leis votadas em Cortes. O deputado Morais Sarmento propôs que se decorasse el-rei com o título de pai da Pátria, o que Fernandes Tomás contrariou, até ver que título se lhe havia de dar; que depois de feita a Constituição se veria o que tinha de se lhe conferir; mas o calor dos sentimentos venceu o rigor lógico, e o Congresso prorrompeu em manifestações entusiásticas, que atingiram o auge quando o presidente correu a cortina que encobria o retrato de D. João VI. Os navios surtos no Tejo, as torres, o castelo, salvaram; e à noite a cidade «apareceu toda iluminada como por encanto. As esperanças dos inimigos da Regeneração se perderam, e os amigos da Pátria e do Rei já divisam quase preenchidos os seus ardentes votos», escrevia o Astro da Lusitânia.