2. Irradiação do movimento revolucionário

Geograficamente, a Revolução conquistara o território português, e o acatamento dos povos e da Coroa significava publicamente, a nacionais e estrangeiros, que os regeneradores não eram um bando, nem os seus intentos subversivos; porém a conquista geográfica e o acatamento nem sempre significam a adesão moral e muitas vezes escondem, sob a aparência do aplauso ou da resignação, a impotência raivosa da revolta.

Como todos os partidos políticos, mormente nos momentos decisivos das viragens históricas, a «regeneração» tinha um ideal e tendia para articular de novo o Estado e os interesses; o simples facto do seu triunfo e do seu dinamismo, se por um lado lhe recrutava adeptos, por outro gerava-lhe adversários.

A Contrarrevolução foi, pois, contemporânea da Revolução, e como sempre ocorre em todas as grandes transformações políticas o ritmo revolucionário dependeu, por vezes, mais da ação ou dos receios contrarrevolucionários que da lei interna da própria Revolução.

Na sessão de 21 de Março de 1821, aquela sessão em que se soltaram os primeiros brados de alerta, um deputado avisara o Congresso de que lhe constava existir em Lisboa um clube, «que esperava ocasião de uma contrarrevolução, e que era preciso tomar as convenientes precauções». Comentando o facto, o Astro da Lusitânia, ardido periódico liberal, hostil a Fernandes Tomás, a quem chamava o Compadre de Belém, veio denunciar outros focos contrarrevolucionários e, naturalmente, reclamar «medidas enérgicas e capazes de reprimirem as tentativas daqueles que, menos aconselhados, preferem os seus aos interesses da Nação». E informava: «Em Coimbra, um frade mariano sobe ao púlpito e diz ao povo que Portugal queria dar de mão à sua religião, e que o machado estava posto à raiz da árvore; em Vouzela, um energúmeno doutorado repete as mesmas ideias, acrescentando que se pretendia dar cabo de quanto os nossos maiores haviam feito a bem da religião, e que queríamos introduzir os rabinos; no Porto, aparece uma proclamação concebida no mesmo teor; em Coimbra, existe uma sociedade que tem por fim principal dos seus louváveis trabalhos o espalhar as mais ridículas patranhas para desacreditar a Representação Nacional, chegando o seu delírio a ponto de dizerem que a esquadra que se manda aparelhar para Túnis é para levar os deputados que pretendem fugir; em Lisboa, não há só diferença de opiniões, parece que tem havido mais alguma coisa».

Todos estes factos, se acaso eram verdadeiros, revelavam apenas, nesta hora, a inevitável e incoercível existência de boatos e de descontentes; politicamente, não formavam ainda uma força com que os regeneradores tivessem de contar. A oposição grave e temerosa vinha de além-fronteiras, dos conluios da Santa Aliança e das diligências dos diplomatas portugueses, que a Revolução encontrara à frente de algumas legações.

Ao ter conhecimento dos acontecimentos do Porto, na previsão sagaz de que eles não desentranhariam simples consequências policiais, o conde de Palmela, então em Londres, solicitou logo do gabinete inglês a expedição de uns navios para auxiliarem a sufocação da revolta. O conde da Feira, de Lisboa, reiterou o pedido, acrescentando-lhe o do socorro de um empréstimo, único que posteriormente D. Miguel Pereira Forjaz manteve; porém Lord Castelreagh escusou-se, alegando que o seu governo não podia fazer empréstimos sem o consentimento do Parlamento e que o socorro naval poderia significar uma indicação política, senão coação, ao rei de Portugal, cuja vontade a Inglaterra devia respeitar. Por isso prometia apenas não reconhecer o governo revolucionário enquanto D. João VI o não reconhecesse; e com efeito o ministro inglês em Lisboa interrompeu as relações oficiais, subsistindo apenas entre os dois países as relações comerciais.

Entretanto, após o acordo de Alcobaça, instalara-se em Lisboa a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, cujo primeiro cuidado, como vimos, foi assegurar-se das condições imediatas da sua viabilidade. Nesta ordem de ideias dirigiu também a atenção, como não podia deixar de ser, para as relações externas, iniciando-as com a comunicação oficial da sua instalação ao corpo diplomático acreditado em Lisboa e aos ministros portugueses residentes nas cortes estrangeiras. O corpo diplomático limitou-se a responder, como lhe cumpria, que participaria o facto aos respetivos governos; porém os ministros portugueses guardaram silêncio, salvo o ministro plenipotenciário em Londres, D. José Luís de Sousa Botelho, que se escusou por carta particular de manter relações oficiais com a Junta enquanto D. João VI o não autorizasse, e o ministro residente em Hamburgo, José Anselmo Correia, que respondeu «com uma carta tão incoerente no estilo, como absurda na matéria», no parecer da comissão parlamentar de averiguação da conduta dos diplomatas portugueses.

Nem por isso o Governo Provisional desistiu de esclarecer os soberanos e povos da Europa acerca das causas e dos fins da Revolução. Era um dever; impunham-no a política liberticida da Santa Aliança e, como veremos, as tramas de certos agentes diplomáticos, que urgia contra-arrestar. Coube a delicada missão a Frei Francisco de São Luís, e da sua pena vernácula, da sua mente esclarecida e do seu ânimo patriótico brotou um dos mais notáveis, senão o mais notável, dos nossos manifestos políticos, pela pureza da linguagem e pela elevação das ideias e dos sentimentos.

Nele expunha o erudito beneditino as causas da Revolução e os «verdadeiros princípios que dirigiram os portugueses, que os constituíram na indispensável e absoluta necessidade de levantarem unânimes a voz.., para darem ao trono as bases sólidas da justiça e da lei; para o libertarem das insídias da lisonja, dos laços da ambição, das astúcias da arbitrariedade; para o fazerem firme sem poder ser injusto; para o porem a igual distância dos excessos violentos do despotismo tirânico e da frouxidão, não menos funesta, do negligente e inerte desmazelo. Foram estes os votos de todos os portugueses, quando proclamaram a necessidade de uma Constituição, de uma lei fundamental, que regulasse os limites do poder e da obediência; que afiançasse para o futuro os direitos e a felicidade do povo; que restituísse à Nação a sua honra, a sua independência e a sua glória; e que sobre estes fundamentos mantivesse firme e inviolável o trono do senhor D. João VI, e da augusta casa e família de Bragança, e a pureza e esplendor da religião santa, que em todas as épocas da monarquia tem sido um dos mais prezados timbres dos portugueses e tem dado o mais nobre lustre a seus heroicos feitos».

«Debalde se pretende caluniar este generoso esforço, qualificando-o de inovação perigosa», quando é certo que, o que os portugueses «querem e desejam não é uma inovação; é a restituição de suas antigas e saudáveis instituições, corrigidas e aplicadas segundo as luzes do século e as circunstâncias políticas do mundo civilizado; é a restituição dos inalienáveis direitos que a natureza lhes concedeu...».

Por isso, os portugueses não podiam «duvidar de que os seus patrióticos movimentos hajam de merecer, não só a mais favorável consideração, mas até justo louvor, tanto na opinião pública das nações ilustradas, como na dos gabinetes dos soberanos que regem os diferentes povos da Europa...»; «contudo, se a despeito de todas estas considerações, se acharem frustradas as esperanças dos portugueses, eles, depois de invocarem o Supremo Árbitro dos impérios, como testemunha de suas intenções e como auxiliar da justiça da sua causa, empregarão em sua justa e necessária defesa todos os meios e forças que têm à sua disposição; eles sustentarão seus direitos com toda a energia de um povo livre, com todo o entusiasmo que inspira o amor da independência. Cada cidadão será soldado para repelir a agressão iníqua, para manter a honra nacional, para vingar a Pátria ultrajada, e, em último recurso, eles verão antes talar seus campos, devastar suas províncias, reduzir a lastimosas ruínas suas habitações, e exterminar o nome português, do que hajam de submeter-se a um jugo estrangeiro, ou receber a lei de nações que lhe são na verdade superiores em forças e poder, mas não em honra e dignidade. Jamais deixa de ser livre um povo que o quer ser... O povo português terá uma justa liberdade, porque a quer ter... Atentem os monarcas e os povos que a injustiça e a imoralidade de uma guerra, por mais felizes que sejam aparentemente os resultados, nunca deixa de ser punida, cedo ou tarde, pelas leis invariáveis da ordem eterna que o Supremo Árbitro do mundo prescreveu a todos os seres, e às quais não pode esquivar-se nem a força, nem a grandeza, nem poder algum sobre a terra».


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