A ingenuidade e o tom profético deste documento não dissimulam as apreensões nem o privam, completamente, de alcance político; se a atitude de D. João VI era ainda um enigma, os regeneradores tinham razão em recear que os perigos de temer partissem dos autocratas coligados na Santa Aliança, que sob o pretexto de assegurarem a paz e a tranquilidade da Europa pretendiam a manutenção do sistema político das antigas monarquias de direito divino. O manifesto tem a data de 15 de Dezembro de 1820. Durante este ano quantos sucessos, quantos embates entre a liberdade e a autoridade, a soberania dos povos e a soberania dos tronos!
Em Espanha, Nápoles e Portugal os povos aclamaram a revolução liberal triunfante; souberam das ameaças do czar Alexandre contra a liberdade, ao protestar a necessidade da Espanha expungir, por um ato expiatório, o escândalo da revolução gaditana; suspeitaram que, em Tropau, a Rússia, a Áustria e a Prússia, as potências dirigentes da Santa Aliança, se reuniam para sentenciarem a revolução napolitana e obstar a que ela contaminasse outros estados itálicos; notaram que a França, na ambição equívoca de querer dominar espiritualmente, queria que prevalecesse a política de conciliação, da qual a Carta de Luís XVIII seria o modelo, e finalmente alegraram-se quando viram a Inglaterra contra-arrestar a ação coletiva, afirmando por escrito e atos que a Santa Aliança não era uma liga destinada a governar a Europa e a policiar a política interna de cada estado.
A despeito das atitudes divergentes das chancelarias, das reservas britânicas e do jogo desencontrado dos sucessos, sobre Portugal pairava o pesadelo da intervenção.
As realidades opunham-se às aplicações do pato liberticida; nem por isso, porém, os povos «regenerados» se reputavam seguros, porque pela declaração de 8 de Dezembro de 1820 os soberanos da Santa Aliança afirmavam que a coligação organizada contra a Revolução francesa se renovara contra o poder tirânico da rebelião e do vício: «As potências», diziam, «exerciam um direito incontestado tomando em consideração algumas medidas comuns e preventivas contra os estados onde a revolta tinha derribado o governo, ou onde ameaçava os estados vizinhos, da repetição de semelhante desastre. Tinham, pois, chegado a um acordo com respeito aos princípios a adotar na conduta que era necessário seguir em primeiro lugar com relação a Nápoles, onde a revolta ameaçava, como nenhuma outra o tinha feito, de uma maneira imediata e evidente, a tranquilidade dos estados vizinhos, e onde podia ser combatida mais rapidamente e de um modo mais direto do que em qualquer das outras nações revolucionadas».
A Santa Aliança não desistia, pois, de reprimir a revolução portuguesa, pela intervenção militar, se fosse possível, e pela coação diplomática em qualquer caso.
Os agentes diplomáticos portugueses não ignoravam esses conluios e tramas; e, justificando-se com a circunstância de D. João VI não ter reconhecido o Governo Provisional, continuaram a considerar-se representantes da monarquia absoluta, e alguns diligenciaram mesmo desacreditar e destituir o governo revolucionário à custa da dignidade nacional. A Inglaterra compreendia a «regeneração», e junto de Viena como que a justificava; por isso se dirigiram aos soberanos da Santa Aliança as diligências dos nossos diplomatas, cujos protestos e denúncias foram ouvidos, mas que não lograram, contudo, provocar a intervenção estrangeira, nem um ato positivo de hostilidade.
A três expedientes recorreram para combater o governo que consideravam intruso: o bloqueio comercial, a recusa de passaportes e a intervenção estrangeira.
D. António Saldanha da Gama, enviado extraordinário e ministro plenipotenciário em Madrid, o marquês de Marialva, embaixador em Paris, Francisco José Maria de Brito, ministro na Haia, D. Joaquim Lobo da Silveira, ministro plenipotenciário em Berlim, José Anselmo Correia, ministro residente em Hamburgo, e a maioria dos cônsules, todos se conluiaram para estabelecerem o bloqueio comercial, recusando despachos aos navios que demandassem os portos de Portugal, e o isolamento do país, denegando passaportes aos cidadãos portugueses que desejassem regressar à pátria. Estes arbítrios frustraram-se; o Governo Provisional, suspendendo o alvará de 30 de Maio de 1820, que ordenava à marinha mercante a apresentação de passaportes e despachos, manteve o comércio externo, e assim puderam entrar no Tejo navios vindos de Nápoles, Génova, Antuérpia, Amesterdão, Lubeck, Estocolmo, Grauld, Boston.
O terceiro expediente, indigno porque feria o decoro e a independência de Portugal, foi a solicitação da intervenção estrangeira. Conceberam-no e diligenciaram-no o marquês de Marialva e, sobretudo, D. António Saldanha da Gama, a quem o despacho de 23 de Julho de 1818 munira de plenos poderes para tratar dos negócios de Portugal em qualquer congresso que eventualmente se reunisse na Europa.
Quando triunfou a revolução de Nápoles, após a de Espanha, D. António Saldanha da Gama dirigiu, em 2 de Agosto de 1820, uma circular às legações portuguesas de Paris, Londres, Viena, Berlim e São Petersburgo, na qual, denunciando a atividade das associações secretas espanholas, as prevenia de que os representantes diplomáticos de Espanha eram agentes ao serviço da revolução.
O êxito da revolução constitucional em Portugal convenceu-o de que já nada tinha a fazer em Espanha; por isso abandonou Madrid em 9 de Novembro de 1820, deixando como encarregado de negócios Joaquim Severino Gomes; e a conselho do marquês de Marialva seguiu para Paris, onde mais facilmente faria ouvir aos representantes das grandes potências o seu grito de alarme e de socorro.
Na capital francesa encontrara o caminho aberto. O marquês de Marialva, embaixador em França, havia tomado já diversas iniciativas contrarrevolucionárias, como a recusa de passaportes para Portugal e o envio de notas, primeiro ao príncipe de Metternich, em 6 de Outubro de 1820, informando-o dos sucessos e sugerindo-lhe alguns expedientes para extirpar o espírito de revolta, e depois à comissão das cinco grandes potências estabelecida em Paris, ao ministro de Portugal em Viena, e de novo a Metternich, para derrubar o Governo Provisional mediante a intervenção da Santa Aliança.
As tentativas de Marialva malograram-se. À primeira nota Metternich respondeu-lhe em 26 de Outubro, falando-lhe na «profunda impressão» das notícias, mas não se comprometendo: «Ela [a revolução de Lisboa de 15 de Setembro] deve sem dúvida chamar sobre si a mais séria atenção de todos os governos, e V. Ex. a provocando a minha sobre as causas e os resultados prováveis dos últimos acontecimentos, que se têm passado em Portugal, nada podia acrescentar ao vivo interesse que me inspira a situação de Sua Majestade Fidelíssima num momento de tão perigosa crise».
No mesmo dia, porém, em que consolava o embaixador português o maquiavélico príncipe oficiava ao representante da Áustria em Paris, instruindo-o e autorizando-o a informar pessoalmente o marquês, acerca da nota que este dirigira à comissão das potências, de que os «princípios que este deseja ver proclamar solenemente pelas potências aliadas, como consequência necessária dos que foram consagrados pelas transações de Viena em Paris, e de Aix-la-Chapelle, são sem dúvida conformes aos nossos votos. Apraz-nos acreditar que eles o são igualmente aos de todos os soberanos aliados. Mas seria entregarmo-nos a uma perigosa ilusão lisonjearmo-nos em que estes mesmos princípios pudessem ser proclamados hoje pelas cinco grandes potências, de que a Aliança se compõe. Para esperar era necessário que se achassem explicitamente expressos nas citadas transações; mas, como o não estão senão implicitamente e parcialmente, debalde seria tentar-se levar a Inglaterra e a França, que não podem obrar senão segundo a letra dos tratados, a fundarem sobre estes princípios uma declaração de guerra oficial. Quanto à obrigação que impõe às potências aliadas a terceira proposição do senhor marquês de Marialva, duvido muito de que se possa levar a contraírem-na as mesmas cortes independentes, tais como a Áustria, Rússia e Prússia... A corajosa iniciativa que o imperador não hesitou em tomar, para conjurar os perigos a que a Itália se acha exposta pela revolução de Nápoles, não pode seguramente deixar dúvida alguma sobre os princípios políticos da Áustria. Mas se a posição geográfica lhe oferece os meios de procurar fazer parar o mal na Itália, não lhe permite estender a sua ação a Portugal. Não podendo prestar-lhe senão um auxílio moral, deve ela ocupar-se antes de tudo da indagação dos meios mais próprios para o tornar eficaz, e o senhor marquês de Marialva pode estar certo de que esta indagação será para o imperador, nosso augusto senhor, o objeto da sua constante solicitude. Mas, com a mais pronunciada vontade de ser útil a Sua Majestade Fidelíssima, não está igualmente no poder do imperador remover as dificuldades que tornam para Portugal a aplicação do remédio quase impossível, atenta a sua situação geográfica».