3. A obra legislativa das cortes

Nestes e noutros contrastes se debateram os constituintes; por isso existem e existirão juízos opostos sobre o Soberano Congresso, cuja obra alguns afiançaram de restauradora de velhas tradições e outros, pelo contrário, de revolucionária.

A nosso ver, a índole da maioria dos deputados era conservadora, desejosa, acima de tudo, de que a reorganização da vida pública se operasse pacificamente, sem lutas cruentas nem dissídios funestos; porém as ideias que o Soberano Congresso instaurou representam indiscutivelmente inovações no nosso direito público. Em si mesmas nada tinham de original; eram as ideias da época, que, semeadas por uma falange ardorosa de filósofos e de críticos do século XVIII, incendiaram a Revolução francesa, cuja labareda crestou os tronos absolutos da Europa, exaltaram os patriotas de Cádiz, presidiram à independência das repúblicas sul-americanas e muitos reconheciam constituírem o segredo da grandeza da Inglaterra, a qual granjeou ascendência europeia pela sua vitória sobre Napoleão, genial cabo-de-guerra, e sobre o princípio autoritário que ele representava.-

Essas ideias inovadoras polarizavam-se no estabelecimento de uma constituição escrita, que, ao contrário das vagas Leis Fundamentais da monarquia tradicional, fixasse, contra o arbítrio real, os direitos naturais do homem e do cidadão; contra os privilégios senhoriais, a liberdade e igualdade perante a lei; contra o poder autónomo do rei, a soberania nacional, o governo representativo.

Estes princípios, considerados fundamentais e essenciais ao Estado moderno, tanto podiam articular-se sob forma republicana, como sob forma monárquica; porém, como já observámos, o sentimento monárquico era em 1820 tão vivo quanto era detestada a ideia republicana, pelos horrores da Revolução francesa. Não era, no sentir geral, D. João VI «o mais amado dos monarcas»?

Por isso, a expressão jurídica e técnica destes princípios e mais precisamente o estabelecimento do governo representativo revestiu a forma da monarquia constitucional e parlamentar.

Conhecidos os sentimentos, as ideias e as aspirações dos vintistas, vejamos a expressão jurídica que eles lhes deram.

As Cortes funcionaram no antigo convento das Necessidades.

A sessão preparatória, de verificação de poderes e de redação da fórmula de juramento dos deputados, teve lugar em 24 de Janeiro de 1821, nas em rigor só se instalaram no dia 26, quando os 74 deputados eleitos, que se achavam em Lisboa, após a missa do Espírito Santo e da prestação do juramento na Sé, ao som estrepitoso das salvas de artilharia, se dirigiram para as Necessidades. As três primeiras sessões, entre discursos gratulatórios, ocuparam-se com as eleições da mesa das Cortes, fórmula do juramento dos ministros, «com subordinação às Cortes gerais e extraordinárias da nação portuguesa...», e substituição da Junta Provisional imposta pela revolução, por um novo governo, designado de Regência.

Votado, não sem discussão, em 28 de Janeiro, o princípio, de graves consequências políticas no futuro, de que os deputados não fariam parte da Regência, que em nome de 1-rei exerceria o poder executivo, a não ser quando as Cortes declarassem a Nação em perigo, procederam à eleição dos cincos membros da Regência, que superintenderiam conjuntamente em todos os negócios do Estado, e dos cinco secretários do despacho, ou ministros, que apenas geririam e teriam voto nos negócios do Interior, da Fazenda, da Guerra, da Marinha e dos Estrangeiros. Para a Regência foram eleitos o marquês de Castelo Melhor, o Conde de Sampaio, Frei Francisco de São Luís, José da Silva Carvalho e João da Cunha Soto Maior; e para as cinco secretarias, respetivamente, o desembargador Fernando Luís Pereira de Sousa Barradas, Francisco Duarte Coelho, o marechal de campo António Teixeira Rebelo, o chefe de divisão Francisco Maximiliano de Sousa e Anselmo José Braamcamp de Almeida Castelo Branco. Todos aceitaram e prestaram juramento, salvo o marquês de Castelo Melhor, que alegou impossibilidade física.

Resolvidos estes assuntos, preliminares e de urgência, as Cortes tinham diante de si o caminho incerto dos debates e das votações. A inexperiência política, a vaidade, as rivalidades doutrinárias, as campanhas da imprensa, o patriotismo ingénuo, que derramou sobre o Congresso uma verdadeira epidemia de memoriais com sugestões e projetos, lançá-las-iam no mar da barafunda, sem norte, se Fernandes Tomás, com sagaz previsão e a exemplo das Constituintes de Cádiz, não atalhasse o perigo iminente propondo na terceira sessão, em 29 de Janeiro, que, em face da «grande urgência que havia de tratar dos principais objetos para que fora reunido o congresso» e da possível vinda próxima de D. João VI ou do príncipe real, era necessário que «ao menos as bases da Constituição estivessem formuladas e adotadas, para haver que jurar».

Aprovada a proposta, nomeada a comissão encarregada de redigir as bases do novo código político, a qual ficou constituída por Fernandes Tomás, Borges Carneiro, Ferreira de Moura, Pereira do Carmo e Castelo Branco, o Soberano Congresso fixara a sua missão capital; podia discutir uma multidão de assuntos, porém à margem e sem nunca perder de vista o objetivo supremo.

Na sessão de 9 de Fevereiro, a comissão apresentou o projeto das bases da Constituição; é uma data capital na história do nosso direito público, e as ideias nelas expressas foram a pedra angular da Constituição, que em 23 de Setembro de 1822 os deputados selaram com a sua assinatura, e no 1º de Outubro o rei jurou e fez publicar como lei fundamental do Estado.

Três períodos há a considerar na atividade parlamentar do Vintismo:

1º) Desde a instalação das Cortes Constituintes ao desembarque de D. João VI em Lisboa e seu juramento das bases da Constituição, isto é, desde 26 de Janeiro a 4 de Julho de 1821.

2º) Desde 5 de Julho, isto é, da substituição da Regência pelo primeiro ministério liberal nomeado por D. João VI, ou mais rigorosamente, de 9 de Julho, início da discussão do projeto da Constituição, até 4 de Novembro de 1822, em que o Congresso Constituinte deu por finda a sua missão.

3º) De 22 de Novembro de 1822 a 2 de Junho de 1823, isto é, o decurso da segunda legislatura ou Cortes ordinárias, desde a sua instalação ao pronunciamento da Vila francada.

No primeiro período dos trabalhos do Congresso avulta a discussão e votação do projeto das bases da Constituição. Os seus trinta e quatro artigos, em grande parte decalcados sobre a Constituição de Cádiz de 1812, exprimiam política e tecnicamente os novos princípios de direito público, que acima referimos; deles ressaltava nitidamente o propósito de privar a realeza da interferência e gestão dos negócios públicos, concedendo-lhe apenas o direito condicional e pro forma de sancionar as leis não fundamentais. Os princípios formulados, as omissões, especialmente acerca da religião e da dinastia, e a tinta republicana com que se escreveram alguns artigos, suscitaram, como é óbvio, divergências doutrinárias e debates apaixonados; qualquer que fosse, porém, os seus defeitos urgia que se discutissem, para se delinear o futuro, comprometer a Nação na nova ordem política e possivelmente vincular o rei, cuja atitude a esta hora era um enigma. Servindo apenas de alicerce, sujeito ainda a alterações na discussão definitiva da Constituição, a sua votação rápida assumia capital importância política.


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