A lição de direito constitucional, aliás de estrutura moderada, na qual o monarca se apresentava como elemento essencial do poder legislativo e reivindicava o direito de iniciativa, irritou o Congresso, que, por proposta de José António Guerreiro, resolveu que a comissão da Constituição desse parecer sobre o atrevido discurso. O parecer foi o que era de esperar: contrário aos princípios estabelecidos nos artigos 21.0, 210 e 27.° das Bases, que atribuíam exclusivamente às Cortes a representação nacional e o exercício do poder legislativo, não podia ser tolerado. Participada a admoestação a el-rei, em 14 de Julho respondia o ministro do Reino que o monarca havendo jurado as Bases não podia ter a intenção de desmentir no discurso o que solenemente afirmara no juramento.
No dia 5 de Julho de 1821 entrou em exercício o novo regime constitucional. As Bases da Constituição, que a todos obrigavam, serviam provisoriamente de lei fundamental; o Rei, em Lisboa; Cortes, em sessões plenárias e no trabalho das comissões, em plena atividade; o Poder Executivo, constituído por ministros nomeados pelo rei; o Conselho de Estado, formado de oito membros escolhidos por el-rei dentre as vinte e quatro pessoas indicadas pelas Cortes.
Começava uma era nova nos fastos do Vintismo, cujo centro de gravidade, como na que acabamos de compendiar, continua a ser o Soberano Congresso. O novo ministério, o primeiro ministério constitucional, nomeado por D. João VI no dia 4, após a cerimónia do juramento, às oito horas e meia da noite, era constituído por António Pedro Quintela (Reino), Francisco Duarte Coelho (Fazenda), António Teixeira Rebelo (Guerra), Joaquim José Monteiro Torres (Marinha) e o conde de Barbacena, D. Francisco (Estrangeiros).
Discutidas e votadas as Bases, o Congresso tinha diante de si a tarefa delicadíssima da elaboração da Constituição, e, como seu corolário, a refundição das leis e da administração, de harmonia com os novos princípios constitucionais.
O projeto de Constituição, publicado nas vésperas do regresso de D. João VI, em 30 de Junho, dividia-se em 217 artigos, repartidos por seis títulos: Dos direitos e deveres dos cidadãos portugueses; Da nação portuguesa e seu território, religião, governo e dinastia; Das Cortes e do poder legislativo; Do poder executivo ou do rei; Do poder judicial; e Do poder administrativo.
A discussão prolongou-se, sem interrupções, por mais de um ano; miada em 9 de Julho de 1821, concluiu em 14 de Setembro de 1822, sendo assinada em 23 de Setembro, jurada pelo Congresso em 30 deste mês e pelo rei no 1.° de Outubro.
Todos os artigos do projeto suscitaram, mais ou menos, divergências e debates; porém os grandes temas de discussão versaram sobre a noção de soberania, os direitos individuais, as imunidades parlamentares, o sistema uni ou bicamaral, os poderes do rei, a extensão e natureza do veto real, a organização do Conselho de Estado, as relações da Igreja e do Estado, etc.
Levar-nos-ia longe a análise destes debates, por vezes brilhantíssimos e eloquentes; baste-nos apenas notar que o individualismo, o liberalismo e o princípio da soberania nacional, se não conduziram os constituintes a romperem com a pessoa de D. João VI, que sempre respeitaram, levaram-nos a elaborar uma Constituição que privou o rei dos antigos direitos e regalias e rompeu os laços de transação com o antigo regime.
Esta foi a sua glória, no campo puro dos princípios; mas no domínio das realidades o seu supremo defeito. Instaurando o regime parlamentar extremo, com desrespeito do princípio da separação de poderes, roubaram-lhe as condições vitais do seu exercício e rendimento, porque, privando o monarca do direito de escolher ministros entre os deputados e tornando inelegíveis os ministros, cavaram um fosso entre o poder executivo e o legislativo e dificultaram ao próprio Parlamento o conhecimento íntimo dos problemas da Administração. Demais, optando pelo sistema uni-camaral, excluíram praticamente do poder duas classes sociais poderosas, a nobreza e o alto clero, e abriram a porta à ditadura de uma convenção; e recusando ao rei o direito de dissolução dasCortes, tornaram insolúvel legalmente qualquer conflito que surgisse entreelas e o poder executivo. Por isso, o dinamismo do sistema conduziriafacilmente, mais dia, menos dia, ou à insurreição das Cortes contra o rei, ou do rei contra as Cortes. O resultado viu-se; quando subiu a maré contrarrevolucionária, a Constituição caiu, porque desligada das forças que compunham o corpo social, raros apareceram a defendê-la, poucos tendoa perder com a sua queda e menos ainda a ganhar com o seu triunfo.Paralelamente à discussão da Constituição, o Congresso ocupou-se de numerosas leis secundárias, quer como corolário dos princípios estabelecidos na lei fundamental, quer ditados pelo estado do país. Na sessão de 20 de Outubro de 1821, Borges Carneiro, depois de propor a extinção da Ordem de Malta e de salientar a necessidade urgente de se impetrar a bula que extinguisse por «uma vez» a Patriarcal, afirmava: «Nós estamos em uma regeneração, e é preciso que a Nação toda se regenere e que o despotismo vá para baixo. [...] Enquanto se não revogarem aqui todos os dias trezentas leis, sessenta ofícios e vinte ministros, não se faz nada».
O Congresso não cometeu a hecatombe desejada pelo ardoroso deputado; mas quantas amputações e enxertos no corpo jurídico e administrativo do Estado!
Para além de numerosas propostas e iniciativas, que não chegaram a ser discutidas ou articuladas, baste-nos apontar as reformas capitais. Entre elas contam-se a lei da liberdade de imprensa (14 de Julho de 1821), que extinguiu a censura prévia, criou o júri, estatuiu a propriedade literária, distinguiu e graduou as penas e delitos; a reforma dos forais (lei de 5 de Junho de 1822); a criação do Banco de Lisboa (lei de 31 de Dezembro de 1821), com o fim de desterrar a usura, promover a comodidade das transações e a amortização do papel-moeda; a lei eleitoral (11 de Julho de 1822); a reforma das corporações religiosas regulares de ambos os sexos (lei de 24 de Outubro de 1822); várias medidas tendentes a proteger a propriedade (decretos de 15 e 29 de Maio de 1822 sobre aposentadorias), a indústria e a agricultura (notadamente a reforma do Terreiro do Trigo, a que lançou as bases de um banco agrícola) e a inventariar os bens próprios nacionais. A obra das Cortes foi essencialmente legislativa. Era o seu dever; as circunstâncias, porém, forçaram-nas a ocuparem-se de questões políticas, por vezes intempestivamente, como a crise ministerial aberta em 31 de Agosto de 1821 pelas censuras de Fernandes Tomás dirigidas ao ministério, e cuja solução foi laboriosa; a prisão do conde dos Arcos; a pastoral do patriarca exilado em Baiona; e o pedido do conde de Palmela, de se ausentar para o estrangeiro, o qual foi indeferido.
A todas estas questões sobrelevou, pela sua magna importância nacional, o processo da separação e independência do Brasil, cujo desfecho teve lugar em 12 de Outubro de 1822, com aclamação de D. Pedro como imperador do novo Estado autónomo. Noutro capítulo desta História encontrará o leitor a narração e a explicação dos acontecimentos, mas não devemos abandoná-los sem apontar a tentativa de solução jurídica e política, que as Cortes insensatamente não consideraram. «Era inevitável a separação do Brasil», escreveu Lopes Praça; «os motivos que a determinaram não dependeram na sua máxima parte dos desatinos das Constituintes; poderiam ter procedido com maior acerto, mas dificilmente teriam conseguido a moderação necessária para evitar ressentimentos prejudiciais a Portugal e ao Brasil».