3. A obra legislativa das cortes

Estes juízos do sábio historiador e intérprete do nosso direito constitucional exprimem a verdade, porém a nosso ver esta verdade não desterra os erros cometidos pelo Soberano Congresso. Naquela emergência grave cumpria aos constituintes erguerem o espírito à altura em que os sentimentos são dominados pela razão e em que a transigência oportuna e digna é a única forma de poder vencer. Não há no Soberano Congresso um único ato que recorde a famosa noite de 4 de Agosto da Assembleia francesa; pelo contrário, a intransigência, como símbolo de galhardia moral, foi a sua norma constante. Por isso não surpreende a indignação com que acolheram todas as tentativas de transação, a recusa obstinada e cega em estabelecerem uma fórmula de entendimento político entre as aspirações da velha colónia e os interesses da metrópole. De todas essas tentativas a mais famosa foi o «Parecer da comissão encarregada da redação dos artigos adicionais à Constituição portuguesa, referentes ao Brasil», de 15 de Junho de 1822. Elaborado por deputados brasileiros, propunha, dentre outros alvitres, a existência de dois Congressos, um no reino do Brasil, outro no de Portugal e Algarves, legislando respetivamente sobre os negócios privativos do reino onde funcionassem, e a de umas Cortes Gerais, com sede em Lisboa, capital do império luso-brasileiro, compostas de 50 deputados, 25 de Portugal e 25 do Brasil, eleitos pelas respetivas legislaturas. As Cortes Gerais competiriam dentre outros assuntos, a revisão das leis dos congressos especiais, os diplomas reguladores das relações comerciais entre os dois reinos e com os estrangeiros, a defesa do reino-unido e a fixação anual dos respetivos orçamentos. Ao regente do Brasil cabia a sanção das respetivas leis, embora com carácter provisório, e era-lhe vedado apresentar bispos, nomear juízes do Supremo Tribunal de Justiça e agentes diplomáticos, declarar a guerra, fazer a paz e negociar tratados de aliança ofensiva ou defensiva.

Como se vê, o projeto propunha uma espécie de federação, inspirada talvez no exemplo da Irlanda e da Inglaterra, e continha duas partes: uma relativa ao poder legislativo, outra à delegação do poder executivo, confiado ao sucessor da Coroa.

Lido na sessão de 17 de Junho de 1822 pelo deputado brasileiro Ribeiro de Andrada, entrou na ordem do dia da sessão de 26 de Junho, mas a discussão prolongou-se por várias sessões, que foram tomando crescente gravidade, notadamente as de 3, 4, 5 e 6 de Julho. Não faltaram, nestas históricas sessões, as palavras e os gestos ofensivos dos deputados brasileiros, e quando chegou o momento das votações, verificou-se que 66 votos contra 22 não consentiram sequer que a proposta dos três organismos legislativos fosse admitida à votação, e que a comissão deveria apresentar novo projeto sobre a delegação do poder executivo no Brasil, pois a fórmula proposta estava prejudicada por anterior votação relativa ao príncipe real.

A insensata e por vezes agressiva atitude do Soberano Congresso apressou a desunião. O tempo torná-la-ia, quiçá, inevitável, mas a esta hora, conquanto tardia, o projeto significava pelo menos uma tentativa inteligente, que, qualquer que fosse o seu destino, teria poupado os ressentimentos e rancores que se sucederam à rutura violenta.

Uma vez mais, o tudo querer trouxe o tudo perder.

As Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa realizaram a derradeira sessão em 4 de Novembro de 1822. 

Nesse dia, D. João VI viera despedir-se dos constituintes. «Venho congratular-me convosco», dizia-lhes, «e com a Nação pelo acerto das medidas legislativas que haveis adotado para a reforma do edifício social». A resposta foi cordial, mas não auspiciosa: «As Cortes não dissimulam que há nestes primeiros tempos grandes dificuldades a 'vencer. O génio do mal, invejando a união e prosperidade da família portuguesa, ateou o horrível facho da discórdia contra os nossos irmãos do Brasil... Quebra-se o coração com dor quando recordamos tão fatais desastres, os quais a voz agora recusa repetir... Não é dado conhecer desde os primeiros sintomas a natureza e extensão do mal».  

Com efeito, quantos constituintes, ao darem por findo o dever cívico que os congregou, não sentiram no íntimo da consciência a improficuidade da obra que realizaram, e a maré montante dos protestos e das vinganças represadas! 

As Cortes ordinárias, a segunda legislatura liberal, reuniram-se em sessões preparatórias nos dias 15, 18 e 20 de Novembro de 1822, e realizaram a sessão solene da abertura no 1.0 de Dezembro. Os novos deputados denunciavam já o mal-estar da opinião. As eleições, realizadas pelo democrático sistema direto, foram, como era notório, e oficialmente se declarou, irregulares em numerosas assembleias, e das urnas saíram já representantes de diversos partidos. Embora ninguém o declarasse, as eleições realizaram-se sob as duas bandeiras adversárias, a da revolução e a da contrarrevolução. Por isso, os moderados, de política conciliatória e transacionista, foram vencidos, e ainda que os radicais, tipo Pato Moniz, alcançassem a maioria, o partido realista, contrarrevolucionário, logrou uma representação aguerrida, da qual foi chefe parlamentar José Acúrsio das Neves.

Na nova câmara, o centro era neutro e indeciso, constituído no fundo por personalidades sem grande relevo, que timidamente flutuaram entre os dois partidos, sem voz ativa; os que a podiam ter, como Trigoso de Aragão Morato, remeteram-se ao silêncio cauto. «Foge-me a pena», escreveu este ilustre professor e homem público nas suas Memórias, «quando pretendo traçar o quadro horroroso destas Cortes. Por mais que a intriga e o espírito de partido se apoderassem do ânimo dos deputados influentes nas Cortes constituintes e dirigissem as discussões da Constituição e das outras leis pertencentes ao Estado público da Nação, que comparação tem isto com o que se observou nas Cortes ordinárias? Naquelas chegou-se a juntar quase tudo o que havia de bom no Reino, por autoridade e saber; nestas entraram de novo homens ignorantes ou desmoralizados, sem reputação pública e sem meios de subsistência, venais e exaltados jornalistas; nas primeiras, ainda que fosse visível o espírito de partido, não se desprezavam inteiramente os homens moderados, e menos se insultavam: às vezes uniam-se a estes ou todos ou parte dos liberais, e, outras, eram os moderados os que venciam. Mas, nas segundas, perdeu-se inteiramente a decência da tribuna, os homens de bem eram forçosamente reduzidos ao silêncio e cruelmente atacados ou vilipendiados, quando falavam; e os liberais que foram reeleitos não tiveram outro remédio senão pedir emprestada, muitas vezes, a linguagem dos demagogos, para conservarem de algum modo a sua influência. A Constituição era má; mas, por melhor que fosse, não poderia durar muito tempo, estando entregue em tais mãos».

A oposição manifestou-se logo nas primeiras sessões, dando-lhe ensejo um acontecimento de mau agoiro para o futuro das instituições liberais. Na terceira sessão preparatória, de 20 de Novembro, Braamcamp, presidente destas sessões, deu a notícia de haver falecido na véspera Manuel Fernandes Tomás, transmitindo-a «com pesar e saudade porque o finado fora defensor dos direitos da Nação, empreendera e conseguira regenerá-la, sem ofender a sua lealdade, segundo o exemplo de antigos heróis portugueses, que ainda hoje constituíam a melhor parte da nossa glória, fizera à Pátria mui relevantes serviços, e morrera pobre».


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