Ninguém lhe respondeu; uns breves minutos de silêncio significaram todo o pesar da Câmara.
Dias depois, na sessão de 2 de Dezembro, foram apresentados, por diversos deputados liberais, três projetos ou indicações, como então se dizia, propondo que os funerais do «patriarca da liberdade» fossem custeados pela Nação e se concedessem pensões à sua mulher e filhos. Surgiu imediatamente a discussão sobre a urgência das propostas; o deputado de Penafiel, António José da Silva Peixoto, alegando que Fernandes Tomás não concluíra a sua obra e vaticinando aos presentes que eles também morreriam sem a concluírem, rematara as ousadas considerações recusando-se a reconhecer-lhe o título de benemérito. Posta à votação a urgência, votaram a favor dela 87 deputados contra 17. A votação foi sintomática, e mais o foi ainda o decurso da proposta, que, após vicissitudes várias, só veio a converter-se em lei a 29 de Janeiro de 1823.
Este incidente revelou claramente que a política, ou, por outras palavras, o destino das instituições liberais, constituía a preocupação dominante do novo parlamento; e o debate iniciado a 4 de Dezembro, sobre a recusa de D. Carlota Joaquina em jurar a Constituição, o qual terminou por uma votação de 77, contra 9 a favor da rainha, faltando 49 deputados, viu confirmá-la e avolumá-la. No entanto, na sessão inaugural do primeiro de Dezembro, à qual o monarca não assistira por estar adoentado, foi para outra ordem de preocupações que o presidente Ferreira de Moura solicitou a atenção dos deputados. Com o otimismo de quase todas as declarações oficiais, afirmava que «a paz estava assegurada dentro e fora do país», e propunha o seguinte programa de trabalhos parlamentares:
1º) Equilíbrio orçamental, resolução das questões de Fazenda e votação de leis tributárias equitativas.
2º) Reforma, de harmonia com a Constituição, das leis civis e penais.
3º) Estimular o comércio e a indústria como meios principais de animar a agricultura.
4º) Fazer a lei da responsabilidade ministerial e dos funcionários.
5º) Organizar a educação nacional e obviar à indigência.
6º) Regulamentar os serviços militares de terra e mar, e a côngrua do clero.
Como se vê, um programa de trabalhos de excelente intenção e de urgência pública. Ele constituiu, com feito, a ordem do dia de várias sessões, mas o ambiente político não permitia um trabalho regular, metódico e persistente.
Dizia-se de boca em boca que o mal-estar do país resultava da Constituição, e os relatórios ministeriais apresentados às Cortes, longe de dissiparem esta ideia, pareciam confirmá-la.
Silva Carvalho, ministro da Justiça, leu o seu relatório na sessão de 2 de Dezembro. Fazia um quadro sombrio da situação do país, quanto à criminalidade. Concluía pedindo reformas da legislação penal e medidas que melhorassem as condições económicas, morais e mentais do país.
O ministro da Guerra, por seu turno, informava no relatório que havia muito poucos soldados e que não podia recrutar mais por falta de meios. Quanto a navios, existiam 3 naus, 8 fragatas, 9 corvetas, 5 bergantins, 7 charruas e 8 embarcações pequenas, quase tudo apodrecido, tendo ficado no Rio o melhor da armada.
O ministro do Reino também não apresentava um quadro auspicioso quanto à atividade económica do país.
Finalmente o ministro dos Estrangeiros, Silvestre Pinheiro Ferreira, filósofo e publicista famoso, dava a entender as dificuldades que encontrou para que as potências aceitassem os nossos representantes diplomáticos, cuja missão tinha «unicamente por objeto o comércio»; por isso se designavam oficialmente, como a Constituinte decretara, encarregados de negócios comerciais dos estados portugueses. Depois, aludia aos tratados de comércio com a Inglaterra, Suécia e Estados Unidos, que estava negociando, ao litígio diplomático com o gabinete de Londres relativo aos adicionais de 15 por cento sobre os lanifícios britânicos, os quais haviam sido decretados pelas Cortes Gerais em Julho de 1821, e cujas reclamações deviam, no entender do ministro, ser atendidas, porque «tanto mais pronta seria esta potência em declarar-se contra qualquer projeto de agressão, que outras quaisquer potências manifestassem, por motivo das nossas atuais instituições; projeto que era impossível desconhecer que a França, à testa da denominada Santa Aliança, meditava contra a península». Observava, contudo, que a Inglaterra fizera apenas declarações categóricas acerca da independência do Reino e «não a respeito das nossas instituições políticas», e por isso trabalhava num tratado de recíproca defesa de Portugal e Espanha, que aliás não chegou a ser, assinado.
A leitura destes documentos oficiais, sinceros, verídicos, que não escondiam os factos nem os deturpavam, avolumaram as apreensões da opinião pública; uns, apelavam já para a restauração do passado; outros, opunham à soberania das Cortes a necessidade de um governo forte; e uns terceiros, perdidas as esperanças no mito da «divinal Constituição», transferiram-nas para o mito incipiente de um salvador.
Por isso, as questões políticas presidiram à segunda legislatura liberal; cometeríamos, porém, uma injustiça se não apontássemos o denodo com que o novo parlamento procurou atacar o deficit orçamental.
O orçamento foi discutido em várias sessões, e esta discussão, interessantíssima para a história económica e social, só veio agravar o mal-estar e desiludir os que ingenuamente haviam acreditado que o simples estabelecimento da Constituição regeneraria Portugal e daria a cada um melhores condições de vida.
O deficit era calculado em cerca de 3000 contos, e para o atalharem as Cortes entraram resolutamente no caminho dos cortes e das reformas. Nada as deteve, nem o prestígio das instituições consagradas pelos séculos, nem o respeito das situações radicadas pelo uso. Bastem-nos alguns exemplos.
A despesa com as Cortes, que era de 240 contos, baixou para 180; a dotação da Academia Real das Ciências passou a metade; a Biblioteca Pública e o Arquivo da Torre do Tombo viram reduzidos o seu pessoal; o Colégio dos Nobres foi extinto; os ordenados do Desembargo do Paço e da Casa da Suplicação foram diminuídos e as despesas com a polícia teriam sido reduzidas por monstruosas em regime constitucional, se não houvesse quem lembrasse que «a república de Platão foi sonho que passou»; a verba das obras públicas passou de 320 contos para 200; a dotação da Patriarcal, de 193 contos para 100, etc. De todos os ministérios, foi o da Guerra o menos cerceado, apesar de terem sido abolidas as escolas militares, e de os vencimentos dos funcionários sofrerem também reduções.
O estado das finanças públicas exigia sem dúvida nova arrumação e enérgica compressão; tê-la empreendido foi a glória suprema da segunda legislatura. Simplesmente, o clamor dos interesses feridos crescia diariamente, como é bem de ver, e no denodo obstinado de atingir o equilíbrio orçamental os deputados não o escutavam, tendo sido talvez com indignada surpresa que a maioria ouviu o ministro da Justiça declarar na sessão de 27 de Fevereiro de 1823 que o conde de Amarante, depois de ter percorrido parte do Minho como agitador, se estabelecera em Vila Real, onde à frente de alguns soldados das milícias e de civis dera morras à Constituição e aos seus sectários. Era, pois, a rebelião contra o regime; as Cortes que providenciassem, e providenciaram votando a suspensão das garantias.