4. A contrarrevolução

Ferreira Borges não aguardou o desfecho dos acontecimentos; no 1.0 de Junho de 1823 embarcou no paquete Duque de Malborough para o exílio em terra inglesa. Julgara, no entanto, de seu dever justificar-se perante D. João VI, assegurando-lhe que se a sua segurança pessoal dependesse somente do rei não emigraria, mas o receio das «vinganças particulares» aconselhava-lhe o exílio. E acrescentava: «Fui eu, senhor, dos primeiros que proclamei a liberdade da minha Pátria, e nem por isso deixei, sempre que tive a honra de estar na presença de vossa majestade, de ser mui distinta e singularmente por vossa majestade tratado, o que me provou que vossa majestade não detestava um sistema que garantisse as liberdades e a propriedade dos cidadãos, que dividisse os poderes e estabelecesse barreiras ao despotismo. Causas de muita espécie fizeram odioso o sistema e arruinaram a sua existência, confundindo-se mui particularmente os vícios dos homens com a bondade da causa. Enfim, a guarnição de Lisboa tomou a resolução que é sabida e a força ditou a lei. Esta é a única razão da minha ausência».           

Estes períodos dizem-nos quais foram os supremos objetivos políticos do vintismo, e dizem-nos também que a juízo de um prócere da «regeneração» houve «causas de muita espécie» que tornaram «odioso» o sistema representativo e cavaram a sua ruína.           

A Revolução nascera na cabeça de uns ideólogos e deflagrara por um pronunciamento militar. Nas primeiras horas, a expulsão dos ingleses e o voto do regresso de D. João VI deram-lhe o semblante da unanimidade patriótica; e, nos dias imediatos, a esperança de que «a cara e doce liberdade», assegurada por «divinal Constituição», derramaria a prosperidade pública e doméstica — tornando os campos ubérrimos, os negócios rendosos, os ordenados pagos a tempo em boa moeda metálica, as contribuições reduzidas, com muita alegria de viver e poucos infortúnios —, transmitiu-lhe o calor das ilusões coletivas, que tecem a história dos povos e lhes geram quase sempre os grandes descalabros. Em 1820, a Nação, deficitária do essencial à vida do corpo e do espírito, viveu, como em raros momentos da história, o mito da felicidade trazida nas asas de angélica Constituição, para, volvidos três anos, desiludida e ressentida, confiar ao mito antagónico dos «inauferíveis direitos do rei absoluto» as novas esperanças de ventura coletiva e individual — e num como noutro mito perseverando na ilusão de que «tesouro nacional era fonte perene, qual devia ser, e vivificante dos empregos e funcionários públicos», como lembrava à Regência o arcebispo da Baía, presidente das Cortes Constituintes, no discurso que lhe dirigiu após o juramento (30 de Janeiro de 1821).

A ilusão durou pouco; como fomos notando no decurso dos capítulos anteriores, a contrarrevolução foi quase contemporânea da revolução, em cujo seio se alimentou e cresceu.

A nobreza da capital e da província, passados os primeiros tempos, começou a sentir-se desapossada de privilégios e preferências na alta burocracia e em sinecuras rendosas, transformando dia a dia a inicial reserva discreta em oposição recalcitrante. O clero, atingido na doutrina e nos interesses, via diante de si lúgubre futuro.

O militar não tinha o soldo em dia, desconfiava dos projetos de reforma do exército, da extinção das milícias e das ordenanças, e ofendia-o que a farda fosse perdendo o prestígio em face da toga e da rabona do burguês. O magistrado notava que a vara da justiça se quebrava no desconceito da opinião e recalcava os ímpetos de desforra das censuras que os deputados quase quotidianamente lhe infligiam. Os funcionários públicos, com o vencimento em atraso e na perspetiva de o ver reduzido, obedeciam passivamente e esperavam o sol nascente; e, finalmente, os que viviam da agricultura não viam valorizados os géneros e notavam com horror crescente a ronda dos salteadores e ratoneiros, que infestavam o país.

A discussão do orçamento na sessão ordinária da segunda legislatura (1823) apavorou toda a gente cujos interesses ou serviços dependiam do Estado; e a separação do Brasil, imputada por uns à lenidade, por outros às bravatas das Cortes, deixou um largo reportório de ressentimentos na alma dos patriotas, nos cofres dos comerciantes e argentários e na economia de numerosas famílias.

Tudo — interesses, sentimentos e ideias — dificultava a união das classes influentes em torno do novo regime, cujo desamor, pelo contrário, era propagado pela imprensa da oposição e pelas animosidades e desinteligências do jornalismo liberal.

O enfraquecimento do poder repressivo do Estado revestia aspetos alarmantes, gerando na consciência média o sentimento da necessidade imperiosa e urgente do poder forte; se dois anos atrás a maioria do país talvez preferisse os desmandos da liberdade ao jugo ordeiro da oligarquia militar, como se viu na martinhada, agora, pelo contrário, sentia que era uma necessidade pública restabelecer a força e o mando do Estado. Não exclamava um deputado que «se deixasse à tropa os meios de exterminar e nada de decretos», e não vinha o ministro da Justiça, Silva Carvalho, ler às Cortes o seu relatório de 2 de Dezembro de 1822, no qual declarava que «à exceção da Itália, aonde os vínculos sociais estão de todo corrompidos, nenhuma nação oferece, como a portuguesa, um tão grande quadro de crimes, principalmente dos que nascem de vinganças pessoais»? Não era o primeiro a pedir o aumento da polícia, notadamente secreta? A seu juízo, a pavorosa estatística criminal devia atribuir-se às anomalias da legislação do antigo regime, mas cumpria não esquecer que a miséria multiplicara as rapinas, os roubos e as violências, numa palavra, «os crimes que nascem da pobreza desmoralizada». Reclamava por isso das Cortes as medidas de ordem económica e cultural capazes de prevenir tais delitos.

Demais, a liberdade trouxera consigo duas novas espécies de crimes: o abuso de liberdade de imprensa e a incitação à revolta, coisas que os homens formados no passado desconheciam.

Os crimes por abuso de liberdade de imprensa «têm-se multiplicado tanto, e tão perigosos são os seus efeitos, que — dizia — me parece haver suma necessidade de um remédio pronto para os coibir e extirpar. Aonde eles mais frequentes são é nos jornais que nesta capital se imprimem, redigidos (com raríssima exceção) por mãos mercenárias e corrompidas, que nada mais se propõem do que extorquir o oiro e saciar as vinganças. Nem um dia se passa, em que se não leiam libelos famosos contra cidadãos probos, e outras classes inteiras de funcionários públicos, com escândalo de todas as pessoas amantes da ordem e bem entendida liberdade. Cumpre advertir que muito tem concorrido para desautorizar os empregados públicos e fazer-lhes perder a sua força moral, indispensável para a pronta execução das suas determinações, esses impropérios, com que ignominiosamente hão sido cobertos pelos jornalistas». Abusos eram estes que levavam o próprio ministro a confessar que «faziam recordar com saudade o tempo em que não existiam».

A unidade de pensamento e de ação do partido liberal poderia ser uma barreira à maré montante do mal-estar; mas ela não existia. Numa memória publicada em Londres em 1825 — Revolução anticonstitucional de 1823, suas verdadeiras causas e efeitos — que Martins de Carvalho reproduziu parcialmente no Conimbricense (nº 3374 e seguintes) e supunha da autoria de Silva Carvalho ou de Simões Margiochi, alude o autor às invejas e apetites de bons lugares, como causas de desinteligência entre os liberais, assim nos «literatos de dentro e fora das Cortes», como nos «pedreiros livres». Aqueles «eram uma espécie de frondeurs, em cuja opinião nada caminhava a propósito estando eles fora do posto dos emolumentos e das distinções», e «deslocar os que estavam colocados era a sua máxima favorita, e já se sabe que era só com o visível intuito de se porem eles nos lugares vagos»; estes, «os pedreiros livres, fizeram também muito mal à causa da liberdade, apesar de todos eles professarem o liberalismo, porque como eles pretendiam ser só os que tinham feito a revolução (o que de facto assim não era), davam com essa impostura o carácter de partido a uma causa que era realmente nacional. Noutra coisa fizeram também os maçons muito mal à causa da liberdade, e foi em se julgarem todos com mérito para serem empregados, só porque professavam o catecismo das frioleiras, como se a tal profissão andasse anexa alguma qualificação, ou moral, ou científica; nesta persuasão infestavam tudo com cabalas e semeavam discórdias, com que as Cortes e o governo se achavam a cada instante comprometidos por sua causa. E afinal, o que sucedeu? Mirabile dictum! Os maçons mais zelosos, mais aferrados à seita, mais fanáticos, e, como dizem, mais carolas, v.g. o Pamplona, o Bernardo da Silveira, o José de Sousa de Sampaio, o Sepúlveda, o barão de Molelos, o marechal Vasconcelos, com bastantes comandantes de corpos, etc., etc., foram os mais furiosos partidários do absolutismo, o que deve acabar de convencer-nos que a sociedade é mais aristocrática, do que democrática, e que os ultrarrealistas nada têm que temer dela».


?>
Vamos corrigir esse problema