4. A contrarrevolução

O rápido quadro que acabamos de delinear mostra-nos que a contrarrevolução tinha raízes esparsas nos vários sectores do país, mas que carecia de uma força que as reunisse e por todas derramasse a mesma seiva de reação. Os anelos de ordem nova eram manifestos, apesar de subterrâneos; simplesmente polarizavam-se em torno de ideias diferentes, desde a restauração pura e simples do trono absoluto à reforma moderada da Constituição.

É regra quase constante nos povos passionais que nas épocas de crise política e social o poder tenda para as minorias opostas e homogéneas; assim, no caso que nos ocupa, eram os dois extremismos — o da soberania das Cortes e o da soberania do Trono — que polarizavam as forças dinâmicas e prospetivas, tornando inviáveis as fórmulas de transação oportunista. Ao que estava, opunha-se o seu contrário, e só este, sem sombra de oportunismo, podia aglutinar as forças recalcitrantes, porque transacionar seria ceder. Quem mais corajosamente, sem olhar às consequências pessoais, afirma e nega, tem nesses momentos de crise a possibilidade de enrolar sob a sua bandeira o exército dos descontentes. Foi o que ocorreu em 1823 em Portugal; a rainha D. Carlota Joaquina deu o exemplo da oposição intransigente; e ao seu brado de reação, cujas consequências impressionaram a sensibilidade pública, acorreram os descontentes e os esperançosos do sol nascente. Demais, a política da Santa Aliança, em pleno predomínio nos tempos anteriores à Vila trancada, inculcava à opinião flutuante, sem a qual nenhuma reforma política vinga, que a manutenção do regime liberal poderia ser um perigo para o país. Indiquemos estas causas, que podem considerar-se as causas próximas da contrarrevolução, como as atrás indicadas as remotas.

Ao regressar ao reino com a família real, D. Carlota Joaquina recusara-se a jurar a Constituição porque «assentara nunca jurar em sua vida, nem em bem nem em mal; o que não era nem por soberba nem por ódio às Cortes, mas sim porque assim uma vez o tinha dito, pois uma pessoa de bem não se retratava; e por ser uma pessoa doente, que bem sabia a lei, e conhecia a pena que ela impunha, e que estava disposta para isso». A recusa passara-se em 22 de Novembro de 1822 e a 4 de Dezembro D. Carlota Joaquina perdia a qualidade de cidadão português e a dignidade de rainha. Nos termos da lei geral devia ser expulsa do reino, como o patriarca de Lisboa; porém como dez médicos houvessem declarado unanimemente que a saída para o estrangeiro lhe acarretaria perigo de vida, foi-lhe fixada residência na quinta do Ramalhão, onde estaria acompanhada somente das pessoas indispensáveis ao seu serviço pessoal.

A comissão parlamentar que teve de apreciar este assunto considerou a lei cumprida «e somente espaçada a sua execução da parte em que por ora se torna impossível». Simplesmente, o deputado Américo das Neves levantou a questão da constitucionalidade do procedimento havido com a rainha, pois em seu parecer a Constituição havia sido violada.

A indicação do famoso deputado, leader da oposição realista, deu lugar a vivíssimo debate, cujo termo não alterou a situação em que estava a rainha, mas todo o país viu que a nova câmara, além da maioria constitucionalista, tinha um centro hesitante e uma minoria oposicionista decidida, que não hesitava em soltar vivas à rainha em pleno parlamento.

A responsabilidade capital da conspiração da Rua Formosa, descoberta em Abril de 1822— e cujo plano tinha por fim dissolver o Congresso, convocar Cortes com duas câmaras, sendo uma privativa da nobreza hereditária, depor D. João VI nomeando em seu lugar D. Carlota Joaquina, assistida de um conselho de regência, e conferir ao infante D. Miguel o comando em chefe do exército — foi atribuída pela opinião pública a D. Carlota Joaquina. A conjura, que contava com «boa gente, milícias e tropas de linha», gorara-se pela vigilância das autoridades e sobretudo pela carência de um chefe militar prestigioso. Levara, no entanto, à consciência de muitos a sensação da instabilidade política; e a lentidão com que marchou o processo — cuja sentença final foi proferida um ano depois, em 7 de Maio de 1823, condenando apenas dois indivíduos, Alpoim a degredo perpétuo e Januário Neves a degredo por cinco anos, penas que aliás não cumpriram pela vitória da Vila-Francada — veio convencer os liberais da impossibilidade de esmagarem adversários altamente protegidos. Por isso o debate parlamentar sobre a recusa do juramento, longe de patentear força, só revelou a fraqueza das instituições, e, naturalmente, concorreu para que as aspirações contrarrevolucionárias se polarizassem em torno de D. Carlota Joaquina.

A primeira manifestação ostensiva partiu de Vila Real, onde em 23 de Fevereiro de 1823 o conde de Amarante, Manuel da Silveira Pinto da Fonseca, soltou o brado contra a Constituição e ergueu a sua espada, e a de alguns caudilhos, a favor de El-rei absoluto. O movimento ficou circunscrito à província de Trás-os-Montes, embora tivesse ramificações no Alentejo, e dominou-o o general Luís do Rego, obrigando o exército contrarrevolucionário, cerca de seis mil homens, a internar-se em Espanha.

O brado de Silveira foi apenas a manifestação de uma parcialidade política; porém um acontecimento exterior a breve trecho iria transformá-la, aditando-lhe as preocupações da defesa e da tranquilidade nacional.

A «regeneração» pudera resistir, pela situação geográfica de Portugal e pelas desinteligências diplomáticas, como vimos, às resoluções dos Congressos de Tropau (Outubro de 1820) e de Laybach (Janeiro de 1820); e não entorpecera a marcha iconoclasta o restabelecimento do absolutismo, em 1821, em Nápoles e Turim pelos soldados austríacos. A situação, porém, modificara-se com o Congresso de Verona (Outubro de 1822), com o discurso de Luís XVIII na abertura do parlamento francês, de 28 de Janeiro de 1823, no qual anunciava a invasão da Espanha por um exército de cem mil franceses «para conservar o trono de Espanha a um neto de Henrique IV, preservar este belo reino da sua ruína e reconciliá-lo com a Europa», e por fim com a travessia da fronteira espanhola, em princípios de Abril de 1823, pelo exército do duque de Angoulême e sua entrada em Madrid em 24 de Maio, de que resultou o restabelecimento do absolutismo de Fernando VII em Agosto do mesmo ano.

Esses acontecimentos alarmaram profundamente a opinião pública; toda a gente começou a suspeitar que o sistema liberal, que provocara a invasão da Espanha, podia acarretar ao país não só a guerra civil, mas uma nova invasão francesa, sendo bem vivas ainda as atrocidades das anteriores. Demais, a Inglaterra conservava-se neutral, e a nota de Silvestre Pinheiro Ferreira, de 20 de Abril de 1823, dirigida ao ministro francês em Lisboa, Lesseps, dando-lhe por findas as suas funções diplomáticas, permitindo contudo que continuasse a exercer as de cônsul geral da França, veio avolumar os receios de perigos iminentes. O governo, nas gravíssimas circunstâncias, procurou atalhá-los, criando e reforçando um exército de observação na província da Beira, e foi esta medida, pela concentração militar a que deu ensejo, que ocasionou as traições e deserções, derradeira causa próxima da Vila-Francada. «Ao exército português, corroído pelas intrigas e ambições dos oficiais, indisciplinado, mal pago, descontente com o governo das Cortes, não só pelos vícios orgânicos do regime que elas representavam e defendiam a todo o transe, mas também pelas supostas culpas que a má-fé e as paixões injustamente lhes atribuíam, ao exército português, afeito ao realismo pelas tradições de sete séculos, submisso ao prestígio da nobreza, obediente aos representantes do velho regime, que ocupavam a maior parte dos postos superiores, repugnavam as lides e canseiras em prol de uma causa de que descrera e contra inimigos que na verdade nos não provocavam.


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