4. A contrarrevolução

Começou, pois, a formar-se nos quartéis um partido médio, entre a revolução e o absolutismo. A liga deste partido com os conspiradores do Ramalhão tornou fácil o aniquilamento do regime de 1822» (A. Viana, A Revolução de 1820 e o Congresso de Verona, pp. 341-342).            

Apontadas as causas próximas e remotas da contrarrevolução, vejamos sumariamente como ela se operou.

Em 27 de Maio de 1823, o regimento de infantaria 23 devia dirigir-se para a Beira, a fim de se reunir ao exército de observação. Mal saiu de Lisboa revoltou-se, indo-se-lhe juntar em Vila Franca de Xira o infante D. Miguel, com um esquadrão de cavalaria 2. Soltou-se então o brado de revolta e deram-se vivas a El-Rei absoluto.

Em carta dirigida a D. João VI, dissera D. Miguel que, não podendo ver por mais tempo a prostração do trono, contra vontade geral, era seu intuito conservar ilesa a majestade real; e numa proclamação dirigida aos portugueses, datada de Vila Franca, 27 de Maio, dizia-lhes que a honra lhe não permitia ver por mais tempo em vergonhosa inércia a majestade real, ultrajada e feita ludíbrio de facciosos, o rei reduzido a mero fantasma, a magistratura despojada e ultrajada, a nobreza abatida, a religião e seus ministros objeto de mofa e escárnio. O seu fim, acrescentava, era libertar o rei, para livremente dar uma Constituição, tão alheia do despotismo como da licença, pois não queria restaurar aquele, nem exercer vinganças, mas unir todos os portugueses.

O alarme do espírito público, as promessas do infante, a fraqueza das Cortes, atraíram para os revoltosos toda a tropa de linha da guarnição de Lisboa e numerosos civis, até que, pouco depois do sol posto do dia 30 de Maio, D. João VI, acompanhado pelo regimento de infantaria 18, o único que até então se conservara fiel, saiu do Paço da Bemposta e dirigiu-se para Vila Franca. Foi o golpe de misericórdia na Constituição. O ato de D. João VI, no próprio dia em que reiterara uma vez mais fidelidade ao regime constitucional, há-de ser sempre tema de reflexão e de juízos opostos; mas naquele transe, os conselheiros que o demoveram, notadamente o marquês de Loulé, salvaram-lhe talvez a coroa e pouparam sem dúvida ao país horrores sanguinários. Como disse Ferreira de Moura nas Cortes, «o poder militar, o rei, a Nação, os seus representantes, são os quatro interlocutores desta peça célebre. O poder militar diz que deve ser modificada a Constituição... El-rei, vendo-se desamparado da força, e supondo haver uma variação na vontade nacional, pareceu-lhe inclinar-se à maioria desta vontade pondo-se da parte do poder militar; e neste sentido outra vez reconheceu el-rei que na vontade da Nação está a soberania. Este é o sentido da proclamação de 31 de Maio».

Estas palavras do paladino constitucionalista absolvem D. João VI; assim como a resposta que deu a Mouzinho da Silveira, em Vila Franca, num momento incerto para o futuro do país, nos fazem compreender o resumo dos acontecimentos. «Vossa Majestade não tem a escolher senão entre dois caminhos, ambos perigosos: ou Tito ou Nero», disse Silveira. «Já escolhi», replicou o soberano, «quero ser Tito».

E, com efeito, foi-o, na medida em que as circunstâncias e as paixões lho consentiram. Na proclamação de 31 de Maio, como já vimos, declarava que as instituições existentes eram incompatíveis com a vontade, uso e persuasões da maior parte da monarquia, e que queria salvar seus súbditos da anarquia e da invasão, conciliando os partidos.

Com este intuito propunha-se modificar a Constituição, que teria mantido se ela houvesse feito a felicidade da Nação.

Com tais propósitos, apoiado na força do exército, D. João VI tranquilizou em parte e de momento a opinião liberal, e quebrantou o partido ultrarrealista, conseguindo que seu filho D. Miguel, que estava com os mais ardidos realistas em Sacavém, lhe acatasse a autoridade, comparecendo em Vila Franca, onde o nomeou comandante em chefe do exército.

Foi ainda em Vila Franca que D. Carlota Joaquina viu restituídas as prerrogativas de que a tinha despojado o decreto de 4 de Dezembro de 1822, se organizou novo ministério, conhecido por ministério dos inauferíveis direitos d’EI-Rei e do qual foram figuras preeminentes os condes de Subserra e Palmela, e começou a faina da substituição das autoridades.

Na proclamação de 3 de Julho de 1823, datada de Vila Franca, a linguagem começou a ser diversa; a constituição era apresentada com o fim subversivo de destruir a monarquia e a dinastia, e os seus autores como eleitos por maquinações 'e subornos. Desenganados de seus erros, eles mesmos se dissolveram de facto, como de facto se congregaram, «e eu os dissolvo de direito», acrescentava o rei.

O partido ultrarrealista exultava, mas queria o comando da política. O regresso de D. João VI a Lisboa foi triunfal; a multidão enrouquecia com os vivas a el-rei absoluto e os morras à Constituição, levando alguns fidalgos e militares o seu entusiasmo ao ponto de puxarem o coche real à saída da Sé, onde el-rei fora assistir a um Te Deum pela restauração dos seus inauferíveis direitos de rei absoluto. Tudo isto animava o partido ultrarrealista, cuja preponderância cresceu quando o duque de Cadaval e o marquês de Abrantes entraram em Lisboa com o séquito dos seus campinos e criados, e o conde de Amarante, regressado de Espanha, fez a entrada na capital, à frente da sua divisão, em 24 de Junho, como um herói. D. Miguel fora esperá-lo; D. João VI decorou-o com o título de marquês de Chaves e a renda anual, por três vidas, de seis mil cruzados; e D. Carlota Joaquina abraçou-o e deu-lhe um beijo na face.

Foi por esta ocasião que se criou a chamada medalha da poeira — tendo de um lado a efígie do monarca, e no outro a legenda à heroica fidelidade transmontana — e uma outra, com a legenda Fidelidade ao Rei e à Pátria e a mesma efígie, destinada aos que tinham ido a Vila Franca (partidários de D. João VI) e a Santarém (partidários do infante D. Miguel).

O ministério, híbrido, sem características nem política definidas, não tinha força para reprimir as reclamações imperativas dos ultras; e assim, progressivamente, foi ruindo a obra iniciada em 24 de Agosto de 1820 a que pôs termo o dia 31 de Maio de 1823.

D. Carlota Joaquina foi reintegrada nos seus direitos, e restabelecido o conselho da casa e estado das rainhas; voltou-se ao antigo formulário de expedição das leis, alvarás, provisões e mais papéis oficiais e diplomáticos; foram levantados os sequestros dos bens do conde de Amarante e de outros indivíduos e soltos os presos por motivos políticos; o patriarca foi convidado a regressar ao Reino; e a Intendência Geral da Polícia foi separada da secretaria da Justiça e restituída à sua antiga forma (4 de Junho). Em compensação prenderam-se novos indivíduos, e demitiram-se outros.

As câmaras constitucionais são substituídas por aquelas que as precederam (10 de Junho), revoga-se a lei de 15 de Março relativa a impostos (12 de Junho), as comunidades religiosas suprimidas pela lei de 24 de Outubro de 1822 são restabelecidas e reintegradas na fruição dos anteriores bens e rendimentos (14 de Junho), dissolvem-se as guardas nacionais e estabelecem-se as ordenanças e legiões nacionais (13 de Junho), extingue-se o Conselho de Estado (14 de Junho) e no mesmo dia se revogam as diversas leis relativas aos ordenados dos funcionários diplomáticos e consulares. O laço constitucional azul e branco é abolido, e o calendário das festas nacionais modificado.


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