1. A soberania nacional

O espírito novo, ou, se se quiser, a essência da crítica filosófica francesa, fizera a sua aparição delicada e irónica nos salões aristocráticos — recorde-se a marquesa de Alorna —, desprendia-se da atitude mental da Academia Real das Ciências, e insinuava-se no próprio clero. Todos os meios sociais se tinham tornado mais ou menos permeáveis às ideias novas.

Não há biblioteca de nobre, desembargador ou burguês ilustrado dos fins do século XVIII e do primeiro quartel do século XIX que não possua livros de Montesquieu, de Mably, de Rousseau, de Voltaire e, por vezes, de Helvécio, Meslier e Holbach. Os sensualistas e ideólogos removiam, pouco a pouco, o ensino da escolástica tradicional, que resistia em parte ao ensino oficial do Genuense. Falava-se do direito natural, dos direitos do homem, da humanização das penas, da soberania do povo, do contrato social, da reforma monacal e eclesiástica, das variações das crenças, do Deus do deísmo filosófico, como conquistas definitivas das «luzes» do século. As instituições, os valores tradicionais e algumas crenças tinham-se tornado problemáticas para alguns «espíritos fortes», e se é certo que o cortejo sangrento da Revolução francesa ofendera a índole bondosa dos portugueses, os princípios que ela afirmara seduziam já, neste começo do século, a despeito de Pina Manique, muita gente.

Os princípios, que não a ação; e assim é que, um pouco pelo ambiente europeu, muito pelo sentimento, os arautos da revolução portuguesa trocaram o figurino francês, de jacobinismo rigidamente coerente, pelo modelo espanhol de Cádiz, romântico e contemporizador. O exemplo vizinho animava os liberais portugueses, mas a polícia, a censura e o romanesco do mistério compelia-os a conviver e a conspirar nas associações secretas, mais ou menos maçónicas. Não há, porventura, nesta sedução do supremo arquiteto, para além do sentimento de defesa, uma irradiação do deísmo filosófico?

As aspirações liberais, num surto avassalador, irradiavam extensamente. A sua primeira manifestação pública foi a «Súplica» dirigida pelo juiz do povo, o tanoeiro José de Abreu Campos, à Junta dos Três Estados, artificiosa invenção de Junot, em 22 de Maio de 1808, na qual se pedia «uma constituição e um rei constitucional, que seja príncipe de sangue da vossa real família [Napoleão]»:

«Dar-nos-emos por felizes se tivermos uma constituição em tudo semelhante à que vossa majestade imperial e real houve por bem outorgar ao grão-ducado de Varsóvia, com a única diferença de que os representantes da nação sejam eleitos pelas câmaras municipais, a fim de nos conformarmos com os nossos antigos usos. Queremos uma constituição, na qual, à semelhança da de Varsóvia, a religião, católica, apostólica, romana, seja a religião do estado; em que sejam admitidos os princípios da última concordata entre o império francês e a santa sé, pela qual sejam livres todos os cultos, e gozem da tolerância civil e de exercício público. Em que todos os cidadãos sejam iguais perante a lei. Em que o nosso território europeu seja dividido em oito províncias, assim a respeito da jurisdição eclesiástica, como da civil, de maneira que só fique havendo um arcebispo e sete bispos. Em que as nossas colónias, fundadas por nossos avós, e com o seu sangue banhadas, sejam consideradas como províncias ou distritos, fazendo parte integrante do reino, para que seus representantes, desde já designados, achem em a nossa organização social os lugares que lhes pertencem, logo que venham ou possam vir ocupá-los. Em que haja um ministério especial para dirigir e inspecionar a instrução pública. Em que seja livre a imprensa, porquanto a ignorância e o erro têm originado a nossa decadência. Em que o poder executivo seja assistido das luzes de um conselho de estado, e não possa obrar senão por meio de ministros responsáveis Em que o poder legislativo seja exercido por duas câmaras com a concorrência da autoridade executiva. Em que o poder judicial seja independente, o código de Napoleão posto em vigor, e as sentenças proferidas com justiça, publicidade e prontidão. Em que os empregos públicos sejam exclusivamente exercidos pelos nacionais que melhor os merecerem, conforme o que se acha determinado no artigo 2.° da constituição polaca. Em que os bens de mão morta sejam postos em circulação. Em que os impostos sejam repartidos, segundo as posses e fortuna de cada um, sem exceção alguma de pessoa ou classe, e de maneira que mais fácil e menos opressiva for para os contribuintes. Em que toda a dívida pública se consolide e garanta completamente, visto haver recursos para lhe fazer face. Queremos igualmente que a organização pessoal da administração civil, fiscal e judicial seja conforme o sistema francês, e que por conseguinte se reduza o número imenso dos nossos funcionários públicos; mas desejamos e pedimos que todos os empregados que ficarem fora dos seus quadros recebam sempre os ordenados, ou pelo menos uma proporcionada pensão, e que nas vacaturas tenham preferência a outros quaisquer. Era sem dúvida inútil lembrar esta medida de equidade ao grande Napoleão; mas como sua majestade imperial e real quer conhecer a nossa opinião em tudo o que nos convém, evidentemente nos prova que é mais pai do que soberano nosso, dignando-se consultar seus filhos, e prestar-lhes os meios para serem felizes.»

Repudiava-se a dinastia de Bragança, reconhecia-se a soberania de Napoleão, afrancesava-se Portugal? Sem dúvida, e sem querer examinar até onde chegou na trágica emergência a falta de patriotismo, basta para o nosso objetivo o intento de modelar o Estado com nova forma jurídica. A «Súplica», redigida pelo Dr. G.J. de Seixas, tivera o voto de personalidades como Ricardo Raimundo Nogueira, então reitor do Colégio dos Nobres, e do lente de Direito Simão de Cordes Brandão. Desagradara, porém, a Junot, porventura pela referência concreta à estirpe do futuro rei, desagradou ao conde da Ega, e tanto bastou para que o juiz do povo fosse repreendido e obrigado a assinar a «Súplica» oficial da Junta dos Três Estados...

O intento não se desvaneceu com a expulsão dos franceses. Persistia, revigorado agora com a sensibilidade patriótica, ofendida com a afronta do inglês, que de aliado se tornara senhor. A rede das associações secretas ia-se estendendo. A mais célebre, pelo rigor da punição, foi o Supremo Conselho Regenerador de Portugal, Brasil e dos Algarves (1817). Sabe-se o seu destino: onze dos seus membros executados no Campo de Sant'Ana, e Gomes Freire, que parece ter sido apenas convidado para participar na conspiração, enforcado na esplanada da Torre de São Julião da Barra. Rodrigo da Fonseca Magalhães, que mais tarde, depois de 34, dizia ter sido republicano na mocidade, salvara a vida disfarçando-se de galego...

Os rigores da execução não mataram os intentos liberais. Tornara-os mais secretos ainda, porque, se para a Regência «nomear um sacristão de Santo António era necessário recorrer ao Rio, para setembrizar cidadãos honrados e matar Gomes Freires não era preciso sair da barra» (Medrões). Meses depois da horrorosa carnificina, em Janeiro de 1818, Manuel Fernandes Tomás, com José Ferreira Borges, José da Silva Carvalho e João Ferreira Viana — tudo burgueses —, replicam ao desafio, fundando no Porto o Sinédrio. Fernandes Tomás, o Justo, era a alma da nova conspiração. A alma e o cérebro.


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