1. A soberania nacional

Bolívar era para este republicano e patriota a figura ideal do libertador. «Fui achá-lo um dia no seu gabinete de estudo», conta Xavier de Araújo, «tendo diante de si abertas as constituições dos estados republicanos da América espanhola; a alegria brilhava nos seus olhos. 'Eis aqui', me disse ele, a constituição que nos convém'. Era a da Bolívia».

Figura ideal apenas. As realidades emocionais do ambiente, a formação jurídica, os conselhos de Bentham, o filósofo utilitário, que por um estranho paradoxo seduziu estes políticos-moralistas, que confundiam na mesma regra de abstrata intemporalidade o direito è o dever, encaminharam-no para outras vias. Dois anos de aliciação tenaz, de cegueira política dos regentes, de crescente mal-estar moral, conduziram o Sinédrio à vitória.

A sugestão do estrangeiro, — Riego sublevara-se no 1º de Janeiro de 1820, impondo o restabelecimento da Constituição de Cádiz (1812), que o dúplice Fernando VII jurara (Julho de 1820) —, e um lance favorável da política interna — o iminente regresso, do Rio de Janeiro, de Beresford, com poderes mais discricionários — ditaram a oportunidade: 24 de Agosto de 1820. A hora era de apoteose. «Aplaudido e sustentado pelas classes mais elevadas da sociedade, enquanto se não apoderaram da direção dos negócios públicos» (Memórias de Fronteira, I, p. 207), a política da revolução nascia romântica, antes de os escritores românticos se desdobrarem em políticos. Em duros versos, ainda de recorte clássico, saudava-se o futuro:

Dias dourados que viu a Grécia e Roma

 Vão ser teus dias, Lísia afortunada

 Tocou nos céus a tua voz magoada,

Desfez-se a treva, nova luz assoma.

Cessou dos males a infinita soma

 Caiu da intriga a máscara dourada,

 A prisca Liberdade aguilhoada

Das mãos do Porto a Lísia hoje retoma.

Era o sentimento geral.

O exército fizera a revolução, e secundava-a, porque os oficiais, na «maior parte, estavam ansiosos por se verem livres dos oficiais estrangeiros, para haver grande promoção e poderem substituí-los» (Mem. de Fronteira, I, p. 199). Expulsos os ingleses, primeiro ato dos patriotas, promovidos os portugueses, ia começar o grande drama...

A voz profunda da revolução, porém, vinha dos juristas. Foram eles que em 24 de Agosto disseram no manifesto à Nação, datado já do Paço do Governo, palavras claras e resolutas:

«Nossos avós foram felizes, porque viveram nos séculos venturosos em que Portugal tinha um governo representativo nas cortes da Nação, e obravam prodígios de valor, enquanto obedeciam às leis que eles sabiamente constituíam, leis que aproveitavam a todos, porque a todos obrigavam. Foi então que eles fizeram tremer a África, que conquistaram a índia, e que assombraram o mundo conhecido, ao qual acrescentaram outro, para dilatar ainda mais o renome de suas proezas. Nunca a religião, o trono e a pátria, receberam serviços tão importantes; nunca adquiriram, nem maior lustre, nem mais sólida grandeza; e todos estes bens dimanavam perenemente da constituição do estado, porque ela sustentava em perfeito equilíbrio, e na mais concertada harmonia, os direitos do soberano e dos vassalos, fazendo da nação e do seu chefe uma só família, em que todos trabalhavam para a felicidade geral. Tenhamos, pois, essa constituição, e tornaremos a ser venturosos. O senhor D. João VI, nosso adorado monarca, tem deixado de a dar, porque ignora nossos desejos, nem é já tempo de pedir-lha, porque os males que sofremos, e mais ainda os que devemos recear, exigem um pronto remédio. Imitando nossos maiores, convoquemos as cortes, e esperemos da sua sabedoria e firmeza as medidas que só podem salvar-nos da perdição, e segurar nossa existência política...

«Portugueses! Vivei certos dos bons desejos que nos animam. Escolhidos para vigiar sobre os vossos destinos, até o dia memorável em que vós, completamente representados, haveis de estabelecer outra forma de governo, empregaremos todas as nossas forças, para corresponder à confiança que se fez de nós; e se o resultado for, como esperamos, uma constituição que segure solidamente os direitos da monarquia e os vossos, podeis acreditar que será essa a maior e a mais gloriosa recompensa de nossos trabalhos e fadigas».

As aspirações renovadoras traduziam-se em duas ideias; a soberania da nação e o império da lei sobre governantes e governados — duas ideias solidárias, igualmente impregnadas de sentido ético e tanto uma como outra precedendo da repulsa da tirania.

A soberania nacional, depois da Revolução francesa, era na essência uma doutrina revolucionária. Soava ao desabar de tronos e ao clamor dos povos que alteraram as suas constituições. Os vintistas, porém, numa visão histórica da pátria radicalmente diversa da visão dos áulicos e dos frades, compraziam-se em a apresentar sob a majestade da tradição, como a reconquista dos direitos públicos perdidos, «a restauração dos antigos princípios da constituição portuguesa, que pela ignorância do povo e usurpação da coroa havia mais de um século tinham caído em total dessuetude e esquecimento».

A história nacional, nos seus lances decisivos, se não no processo íntimo do seu desenvolvimento, impunha esta conceção, que o deputado Pereira do Carmo eloquentemente justificou perante o Congresso Constituinte: «Os membros da Comissão, bem longe de se entranharem no labirinto das teorias dos publicistas modernos, foram buscar as principais bases para a nossa Constituição ao nosso antigo Direito Público, posto acintemente em desuso pelos ministros despóticos, que lisonjeavam os reis à custa do povo. Assim, senhores, quando proclamaram no artigo 18.°das bases, sessão 2º (correspondente ao artigo 26.° da Constituição de 22), o princípio fundamental da soberania e independência da nação, nada mais fizeram do que renovar o que já por muitas vezes se havia proclamado nas épocas mais assinaladas da nossa história. Proclamou-se em Lamego (?) a soberania e independência da nação, quando os portugueses puseram a coroa na cabeça do vencedor de Ourique, o Sr. D. Afonso Henriques. Proclamou-se a soberania e independência da nação, quando as Cortes do Reino fizeram rei, na cidade de Coimbra, ao Sr. D. João I, tronco da Sereníssima Casa de Bragança. São notáveis, senhores, as palavras deste congresso para sempre memorável; eis aqui como se explicaram os deputados de Cortes: Nomeamos, escolhemos, tomamos e ouvimos em aquela melhor e mais comprida guisa que nós pudemos o dito D. João Mestre d'Avis, em Rey, e por Rey e Senhor nosso, e dos ditos Reynos de Portugal e do Algarve, e outorgamos-lhe que se chamasse Rey. Proclamou-se a soberania e independência da nação, quando em 1640 esmigalhámos os ferros, com que nos agrilhoaram os Filipes, e colocámos no trono português o Sr. D. João IV de saudosa memória. Proclamou-se a soberania e independência da nação, quando em 1668 as Cortes de Lisboa depuseram, por incapaz de reinar, ao Sr. D. Afonso VI, e chamaram para a regência do reino ao Sr. Infante D. Pedro. Proclamou-se enfim a soberania e independência da nação nas Cortes de 1679 e 1697, em que dispensaram e derrogaram alguns capítulos das de Lamego acerca da sucessão da Coroa; porque, reconhecendo o Sr. D. Pedro II, que as não podia derrogar, nem dispensar, salvo em Cortes, confessou à face do mundo inteiro que a nação era soberana, e que só à nação competia tocar nas leis fundamentais do Estado. Eis aqui, senhores, como este princípio do nosso evangelho político, que tanto assusta hoje os monarcas da Europa, era reconhecido e praticado em Portugal, haverá bem perto de seiscentos anos. Mas tais doutrinas não serviam nestes últimos tempos; e em seu lugar se deixou livremente correr, ou, para me explicar melhor, mandaram que se acreditasse que o poder dos Reis vinha imediatamente de Deus; ideia sacrílega e absurda, que marca pontualmente até onde havia chegado a nossa degradação.»


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