«Nós jurámos a Carta», escreveu Garrett no Manifesto das Constituintes de 1837; «mas esse juramento não absolveu de outros mais antigos. Jurámos a Carta, mas não jurámos os flagícios que à sombra dela se açoitaram. Pelejámos por ela; mas o sangue que vertemos nem santificou os erros que ela continha, nem se derramou pelo título e algarismos de sua data, senão pelos bons princípios que encerra. A esses ficamos sempre, estamos ainda fiéis».
Tanto bastava para estabelecer o divórcio, e de facto é dele que procede em grande parte a revolução de Setembro de 1836, porventura a revolução mais renovadora do nosso século XIX, depois de Mouzinho da Silveira, o grande executor do antigo regime.
O Setembrismo, que fora vaga conceção política sob um fundo das calorosas vivências emocionais, generosamente românticas, restaurou transitoriamente a Constituição de 1822, e na Constituição, que cristalizou a sua ideologia — a Constituição de 1838 — expressamente consignou o princípio da Soberania Nacional (artigo 33.°), eliminou o poder moderador, criado pela Carta, obstando assim à confusão deste poder com o poder executivo.
Era a consagração legal dos intuitos da revolução, porque, como disse Passos Manuel, defendendo a sua ditadura no Parlamento, em 21 de Janeiro de 1837, o povo «queria o dogma da soberania nacional, queria uma Constituição dada pela nação e não outorgada pela coroa, e queria a abolição da câmara dos pares, ou pelo menos que não optasse na lei constitucional». O eloquente tribuno, a alma mais generosa do liberalismo, acrescentava, em sua defesa: «Eu sou ministro da coroa, mas aquele que é menos cioso das prerrogativas do executivo, porque entendo que as liberdades do povo são as colunas do trono, e que é por este meio que eu hei-de segurar a monarquia constitucional. A rainha não tem prerrogativas, tem atribuições; ela não pode ser considerada senão como primeiro magistrado da nação... Cerquei o trono de instituições republicanas. Atreva-se alguém a mostrar-me que os meus atos não têm sido extremamente liberais. Dei os mais sólidos fundamentos à realeza, que é a liberdade e o amor dos povos».
Furta-se ao nosso objetivo a história das pugnas entre cartistas, ou conservadores, e setembristas, ou radicais. Bastará apenas recordar que em 10 de Fevereiro de 1842, depois da sublevação de Costa Cabral, no Porto, a Carta foi de novo restaurada. A guerra civil desencadeou-se: a Maria da Fonte e a Patuleia foram o protesto enérgico da consciência democrática, afogado miseravelmente pela convenção de Gramido de 29 de Junho de 1847. A dignidade nacional ficara a sangrar: a coroa descera à ignomínia de tolerar a intervenção estrangeira. «Quer a rainha» — escrevia o ministro D. Manuel de Portugal em 19 de Março de 1847, ao embaixador em Londres, no sentido de este persuadir Lord Palmerston a que o governo inglês interviesse na guerra civil — «terminar uma guerra devastadora e fratricida, que contra sua vontade tem sido constrangida a sustentar em justa defesa dos direitos da sua coroa, desacatados e ofendidos na sua real pessoa e dinastia, ameaçados pelo menos de proscrição, e da Carta Constitucional outorgada por seu augusto pai, a qual os rebeldes pretendem fazer substituir, uns por exagerados princípios demagógicos já desacreditados, e outros pelas caducas cortes consultivas, cujas representações nunca modificaram o rigor do despotismo, havendo sido por fim esse falso simulacro de liberdade posto de parte com desprezo, como instrumento governativo já gasto e desnecessário».
A paz, imposta pela Espanha, pela Inglaterra e pela França, sob a coação das armas, fora uma afronta, que os patriotas não esqueceram e Edgar Quinet vituperou num escrito célebre, por ter tirado «a este país a única força sobre que se apoiava, a nacionalidade. Triunfai à vontade», invectivava; «a esperança de tantos homens dedicados, que trabalhavam para revivificar a pátria, de ora avante ficou vazia de sentido.
«Já não é uma sociedade viva, que tem em si o seu móvel de ação; tornaste-a um povo servo, que cada um pode calcar aos pés a seu capricho: apunhalaste Lázaro ao sair do sepulcro».
Data de então o império da Carta, e pouco depois, justo é dizê-lo, a vida nova da Regeneração.
O Ato adicional de 1852 timoratamente tentou a conciliação, consignando o regime de eleição direta para a representação parlamentar, a votação anual dos impostos e a necessidade da aprovação, pelas Cortes, em sessão secreta, antes da ratificação, dos tratados, concordatas e convenções com as nações estrangeiras. Estas disposições representavam respeito pela Nação; porém, os democratas não esqueciam que esse respeito fora vindicado pelas armas (movimento de Abril de 1851) sob a bandeira — Carta reformada —, e o desenrolar da discussão em Cortes da proposta, projeto, proposição e pareceres sobre o Ato tinham revelado o temor de encarar sincera e coerentemente o magno dissídio.
O Ato trouxe consigo a acalmia política: o rotativismo surgiu então como organização do civilismo e da constitucionalização do poder executivo. Persistia no entanto a reivindicação democrática da soberania, porque, como escreveu Rodrigues Sampaio na Revolução de Setembro (13 de Março de 1848), «a Carta não foi concessão duma dinastia segura, não foi uma transação desinteressada com as ideias liberais. Quaisquer que fossem os direitos da Sra. D. Maria II ao trono, ela nunca havia de ser rainha sem o apoio do partido liberal, e esse nunca lho prestaria sem a promessa de ser governado segundo os seus princípios. O sistema constitucional é incontestavelmente a base, a força, o direito positivo, a razão da existência da dinastia atual. Antes da carta, a Sra. D. Maria II era uma rainha legítima, mas impossível; sem o sistema constitucional, ela pode continuar a ser legítima aos olhos da jurisprudência, mas a razão e a justiça desconhecem essa legitimidade».
Por isso, a sedução do progresso material, o escopo supremo da nova política da Regeneração, não afugentou nem fez esquecer a luta moral pelo reconhecimento da soberania da Nação, com os corolários que da sua essência procedem, como a eliminação dos privilégios de nascimento ou de riqueza, tanto mais que uma instintiva tendência encaminhava a realeza para a política personalista.
O sábio Prof. Lopes Praça, liberal convicto e conservador, escrevia em 1879 nos magistrais Estudos sobre a Carta Constitucional de 1826 e Ato adicional de 1852 que «a leitura atenta da nossa Carta Constitucional deixa no espírito do leitor a convicção de que se julgou necessário servir a duas tendências, a duas torrentes rivais e contrárias. Pôs de parte todos os artigos da Constituição brasileira, fonte próxima da nossa, que de um modo terminante, e de acordo com as verdadeiras ideias, condenavam o absolutismo, a teocracia, o tradicionalismo material. Aproveitou, porém, muitos que não poderiam justificar-se senão pela soberania popular. É este um dos maiores vícios da nossa Constituição, e que tem exercido a mais nefasta influência na governação pública. Ainda quando se julgasse indispensável em 1826 que as questões mais importantes fossem deixadas na Constituição orgânica portuguesa sem solução definitiva; quando fosse conveniente a tentativa inexequível de contentar aspirações opostas, e até contrárias, admira que até hoje não tenhamos adquirido a hombridade necessária para que a nossa lei fundamental não seja um documento do nosso atraso ou da nossa imbecilidade e negligência moral e política, preferindo preterir a lei a reformá-la, habituando-nos à dissolução social e ao desprezo das leis».