2. As liberdades públicas e as garantias individuais

O objetivo supremo da revolução de 1820 foi, como dissemos, o estabelecimento de uma Constituição, que, extirpando o poder absoluto do rei pela transferência da soberania para a Nação e delimitando a ação do Estado pela separação dos poderes, assegurasse a liberdade dos indivíduos.          

Este objetivo pressupunha, como é óbvio, um conceito de liberdade, quer dizer, uma noção, por sua natureza sempre metafísica, da essência do homem e a discriminação dos seus deveres e direitos materiais, morais e intelectuais. Coerente com este individualismo, a Constituição de 1822 abre com o título Dos direitos e deveres individuais dos portugueses; conseguiu, porém, o «soberano congresso» defini-los e precisá-los?  

Na realidade, os constituintes fizeram a transposição de princípios e noções da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e qual foi o país civilizado que o não fez?         

A liberdade, segundo a Constituição (artigo 2.°) «consiste em [os portugueses] não serem obrigados a fazer o que a lei não manda, nem a deixar de fazer o que ela não proíbe. A conservação desta liberdade depende da exata observância das leis».    

Esta definição, que remonta a Montesquieu, que aliás lhe dera uma fórmula lapidar — o direito de fazer o que as leis permitem —, reconhecia essencialmente a liberdade civil, a qual tinha como garantia suprema o direito ou, por outras palavras, a ausência do arbítrio.              

É sob o ângulo da liberdade civil que se especificam os «direitos pessoais», a saber: a liberdade, a segurança e a propriedade. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fonte próxima da lei portuguesa, reconhecia, além destes direitos, o direito de resistência à opressão.

A Constituição de 22 não eliminou completamente este direito, mas desfigurou-o sob o «direito de expor qualquer infração da Constituição, e de requerer perante a competente autoridade a efetiva responsabilidade do infrator» (artigo 17.°). O escol dos vintistas teve, sem dúvida, a noção nítida da «eminente dignidade da pessoa», porém o desenvolvimento da noção da liberdade expressa na Constituição desconhece o direito de associação, assim como a liberdade de consciência. O acento específico daquele conceito de liberdade recai sobre o direito, na medida em que este garante os interesses de conservação pessoal e a propriedade. Por isso a projeção imediata e profunda daquela noção de liberdade foi o reconhecimento, nela implícito, da liberdade política, ou seja a admissibilidade de «todos os portugueses... aos cargos públicos, sem outra distinção que não seja a dos seus talentos e das suas virtudes» (artigo 12.°), e o direito a participar na vida política da nação, quer elegendo diretamente os seus representantes, que elaborarão as leis, quer expondo às Cortes e ao poder executivo «reclamações, queixas ou petições» (artigo 16.°).

O complexo de direitos reconhecidos pela Constituição, os quais lhe eram anteriores, porque derivavam da essência do homem, não era exaustivamente definitivo. Seguindo Condorcet (Plan de Constitution, 1788), para o qual nenhuma geração tem o direito de vincular os vindouros, a Constituição (artigo 28.°) consignou o princípio da reforma «depois de haverem passado quatro anos, contados desde a sua publicação» — o que, sob outros pontos de vista, exprimia a crença no progresso e denunciava a doutrina de Rousseau e de Siéyès de que o Estado radica no acordo das vontades individuais. O desenrolar da vida constitucional automaticamente implicaria a necessidade do reconhecimento do direito de associação e da liberdade de consciência e da própria liberdade de pensamento, aliás garantido, com algumas restrições graves, pela Constituição; mas a esta hora, o indivíduo era ainda uma abstração apesar de os direitos políticos e sua garantia se imporem como as afirmações supremas. «Parece que temos liberdade, mas não temos liberais», disse um contemporâneo, e esta observação penetrante desvenda-nos a realidade política de então. Era sob a categoria do numinoso que se concebia a liberdade — ou mais precisamente, que emocionalmente se vivia a mágica palavra. Dela tudo se fiava: a regeneração do homem e do estado, o advento da justiça e da felicidade. Os exemplos abundam. Atentemos, porém, em Garrett, a alma mais puramente romântica desta geração de românticos, porque é por si claro que o romantismo não foi apenas moda literária, mas uma conformação do espírito, que tudo impregnou: a arte como a vida, a política como a religião. Ao princípio, em 1817, a liberdade surgia-lhe como gládio justiceiramente vingador:              

       Ah! Tremei, sanguinários desumanos;

       que ela há-de vir, tremei, a Liberdade

punir déspotas, bonzos e tiranos.

  (o Campo de Sant'Ana)

para três anos depois se dilatar até à reintegração do homem na plenitude da sua natureza:  

Tu do nosso horizonte as densas trevas,

O enviusado manto

Da hipocrisia vil, do fanatismo,

Da tirania acossas;

Tu nos franqueias da existência o gozo;

E as aferrolhadas portas,

Que o sacrário das leis da natureza

Árduas téqui fechavam,

Tu nos abres em par — homens já somos!

                                                   (A Liberdade)

 

Transmudando o homem, a liberdade transmudava correlativamente o Estado, porque sobre o orbe social se erguia apenas o sol da lei justa, coartando ao mínimo a expansão individual. 

Por isso escrevia na apologia O dia vinte e quatro de Agosto que «a liberdade do homem social e cidadão, é o direito que ele tem de exercer todos os direitos que lhe deu a natureza, uma vez que não ofenda a tranquilidade pública e suas justas leis, nem perturbe a ordem social retamente constituída». Dir-se-ia que esta visão da liberdade como força espontânea da natureza conduziria ao direito de revolução. Ilusão, porque Garrett, como os contemporâneos de Vinte e em parte de Trinta e Quatro, referiam a liberdade não à individualização concreta, às potências e apetências do indivíduo, mas ao que havia de comum em todos os homens. «Não é o povo em massa, não é a nação em tumulto, sem ordem, sem lei, que deve levantar a voz, bradar pelos foros. Os inconvenientes, os funestos efeitos deste meio são patentes ao homem menos versado na história das nações. Não é, pois, a nação inteira, mas aqueles de seus membros, que, por suas virtudes, por suas letras, por seu valor e por sua posição na sociedade, puderem, sem perigo dela, sem perverter a ordem, aclamar a liberdade, que o devem fazer» (ibid.).


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