Esta intuição da liberdade, emotiva que não intelectual, era radicalmente incapaz de conduzir a um conceito claro; mas se os liberais não souberam então ao certo o que era a liberdade, souberam mais ou menos o que não era e aquilo que impossibilitava, e este saber de negações levou lógica e eticamente o «soberano Congresso» a cortar os vínculos que prendiam o indivíduo ao trono, ao brasão, ao tombo do mosteiro, ao censor e aos erários.
Estrangulou o arbítrio real, tornando o rei «um sujeito que a Nação emprega para fazer executar a sua vontade», como disse com nítida clareza Pereira Coutinho no Congresso, e o despotismo do Estado, separando os poderes.
Dissipou a confusão do erário régio com o tesouro público pela fixação da dotação real, «artifício este», escrevia Frei Fortunato de São Boaventura, «o mais luciferino de quantos há excogitado o moderno espírito revolucionário, pois não se encaminha a outra coisa mais do que a desligar o exército e a magistratura de uma das maiores dependências, que tinham do soberano, e a tornar cada vez mais clara e patente a nulidade dos Príncipes constitucionais» (Contramina, n.º 3).
Demoliu a nobreza como ordem privilegiada, estabelecendo a igualdade política. No terreno das leis, claro; no entanto, a vivacidade das campanhas do Astro da Lusitânia, um dos periódicos da «regeneração» vintista, revela a profunda fratura que sofrera, na hierarquia dos sentimentos, o que fora uma das colunas do antigo regime. Inicia-se então o reinado político da burguesia. Ambiciosa de honras, ridícula na vaidade, inculta e grosseira, a rigidez das suas virtudes domésticas, mais do que a virilidade na luta quotidiana e a posse dos bens materiais, conferia-lhe indiscutível senhorio sobre a decrépita e corrupta aristocracia de sangue. Tornada conservadora da revolução, depois de Mouzinho da Silveira, a burguesia aspirou profundamente à paz, mas esta palavra soava-lhe como estabilidade de interesses e não respeito e harmonia através da diversidade das consciências. Daí as permanentes vicissitudes na ordem política e pelo contrário a segurança no domínio do direito privado — aspiração que logo brotou em 21, a Carta Constitucional prometeu satisfazer, o legislador de 1835 incitou e que pela inteligência do visconde de Seabra e de uma sábia comissão veio a ter o seu termo em 1868 com o Código Civil, a suprema afirmação da burguesia e da sua mentalidade no século passado.
O igualitarismo e a própria essência do Estado não toleravam os despojos ainda vigorosos da política da Contra-Reforma, toda ela procedente da subordinação do Estado aos fins ético-religiosos.
A lógica da construção incipiente impunha o divórcio desta política. Daí a tendência para a amputação da temporalidade eclesiástica e um novo rumo das relações das instituições religiosas com o Estado. Desde logo, por proposta de Margiochi, a extinção da Inquisição, votada por unanimidade. «Parece que os portugueses», dizia, «deviam pegar em fachos e queimar os tribunais da Inquisição: mas não; é preciso conservar abertos os seus cárceres, para podermos lá ir muitas vezes meditar sobre as desgraças da humanidade. É preciso conservar abertos os seus cárceres para ver os seus fogos, e compará-los com o nosso estado atual. É preciso ir a esses cárceres ouvir os gemidos dos desgraçados que sofreram tantas angústias: gemidos que ainda duram, e que durarão enquanto a nossa Constituição não fizer mudar todos os nossos costumes; enquanto a mesma Constituição não fizer mudar o entendimento e o coração daqueles que ainda não tenham mudado» (Sessão de 24 de Março de 1821). Foi esta uma das sessões memoráveis, e para a tornar mais augusta ainda à nossa memória, a discussão terminou com este voto do deputado Serpa Machado: «Lembro mais a este Congresso que, já que a Inquisição entrou em Portugal com o pretexto da Religião e da Fé, jamais se consinta outro igual instituto, por mais plausível que seja o pretexto que o encubra, isto é, que se não substitua a Inquisição religiosa por Inquisição política». Veio depois a apreciável redução do número de mosteiros regulares dos dois sexos — anúncio da futura extinção de 34; a proibição da entrada de noviços, com exceção dos colégios universitários (Coimbra), das três Ordens Militares de Cristo, de Avis e de Santiago; a extinção dos priorados mores destas ordens, cuja administração foi secularizada, etc., tudo isto revelando que, se a política nova não era ainda a política da liberdade de consciência, esta estava contida nela, como o fruto na semente. Pelo menos marcava uma delimitação inédita em Portugal entre a religião e a política, aliás sem o intuito reservado de menoscabar ou vulnerar a própria religião e a unidade confessional.
Não se disse então, como mais tarde Passos Manuel no veemente discurso parlamentar de 18 de Janeiro de 1836, que «os padres italianos não são fortes, senão porque as nossas cabeças são fracas. Estamos em tempo de nos curarmos desta debilidade cerebral e dizer a esses padres: governai lá os vossos bispados, e ainda os Estados que têm a desgraça de vos obedecerem»; porém, Roma sentia-se escandalizada e vulnerada, e muitos seminaristas e noviços, mais com os olhos na terra que no céu, trocaram o ministério das almas pelas profissões seculares. Luz Soriano, por exemplo, o qual nas Revelações da sua vida confessa que, perante a incerteza do clero regular, mudara de «carreira».
A organização fiscal e o sistema de impostos, ordenados em função de privilégios e, em parte ainda, da conceção patrimonial da realeza, entraram logicamente em crise.
Os dízimos, particularmente, cuja instituição Frei Fortunato de São Boaventura dizia ser «tão antiga, tão respeitável e que encabeça com as mais positivas determinações do Todo-poderoso» (Contramina, n.º 3), eram taxados de musgo da árvore da liberdade. A estrutura do Estado antigo, nos seus fundamentos políticos, sociais e económicos, foi abalada e em parte destruída, porém à obra de destruição não correspondeu a traça construtiva. É que tudo se resolvia em versos e discursos declamatórios, e esta linguagem da superficialidade, esconde sempre uma radical impotência. O que deveria ser obra de razão serena e de sentido das realidades, tornou-se gelatinoso ao calor do sentimento. Por isso as colunas do Estado novo, designadamente os direitos individuais e suas garantias, foram erguidas sobre alicerces precários.
A Constituição reconheceu, além de certos direitos próprios de leis secundárias, como o direito de petição e o segredo da correspondência, a segurança pessoal, a inviolabilidade do domicílio e o respeito absoluto pela propriedade. Exarou a liberdade de pensamento e de expressão, sem dependência de censura prévia; porém, admitiu a censura episcopal dos escritos sobre o dogma e a moral e a punição dos incriminados. Esta restrição grave revela-nos que a liberdade reconhecida pela Constituição era essencialmente a liberdade civil e política. Deteve-se perante a liberdade de consciência, a despeito da vivacidade das discussões sobre se a religião católica devia ou não ser declarada a religião única dos portugueses. Apesar, porém, desta restrição e do desconhecimento de algumas liberdades fundamentais, como o direito de associação, o espírito da Constituição e o seu exercício no tempo importariam necessariamente a correção destas deficiências. Não é sob a tirania e pela tirania que os povos se exercitam na liberdade. «Se a ignorância do povo é um obstáculo para que ele receba boas instituições», perguntava, na Câmara dos Deputados, Passos Manuel, em 10 de Novembro de 1834, «quando é que ele há-de ser sábio e aonde há-de ir ele ter o seu tirocínio? Ilustrou-se, iluminou-se e esclareceu-se algum povo com despotismo, ou há-de ter primeiro a escola da liberdade?... Mas quando será que o povo nos poderá acompanhar nos progressos sociais? Quando o povo vir que a nossa liberdade que professamos não é só da teoria mas da prática; quando vir que temos amor de justiça e ódio à tirania — que é coisa diferente do ódio que se tem aos tiranos».