A revolução de 1820 foi um produto da espontaneidade, provando-nos, uma vez mais, que não basta a espontaneidade para resolver os problemas que a ação renovadora inculca. «Os exaltados patriotas ainda não tinham aprendido a ser revolucionários, escreveu o marquês de Fronteira (Memórias, 1). E com razão. A verdadeira força é a teoria, e esta revelara-se imprecisa; a ação consequentemente hesitante. O estado antigo e a ideologia que o mantinha foram, no entanto, sepultados. Entraram no domínio da história que se escreve; e para a história que se faz, que atua e vive, os vintistas lançaram, com gesto imitativo quase sempre, algumas ideias, que guiaram o século.
Furta-se ao objetivo deste ensaio o relato das vicissitudes políticas, desde a Vila-Francada, que dissolveu o Congresso (3 de Junho de 1823), até à restauração da Carta Constitucional em 1834. É o decénio da guerra civil, durante o qual o país foi o teatro de várias reações, ou, se se quiser, de movimentos de nostalgia diversamente orientados. Umas, moderadas, outra demagógica e sanguinária.
A primeira reação moderada, com o marquês de Palmela por cabeça, visava ao estabelecimento de uma nova lei fundamental.
Os seus esforços foram estéreis. Entre dois campos inimigos — soberania nacional e soberania real, igualitarismo e diferenciação privilegiada, autonomia do indivíduo e aliança do trono e do altar —, o marquês e a Junta não encontraram os alicerces da ponte entre estes abismos, ou, se os encontraram, não a puderam lançar. A Abrilada (30 de Abril de 1824) pôs termo a esta tentativa.
Dois anos depois, em 29 de Abril de 1826, D. Pedro outorga a Carta Constitucional, abdicando (2 de Maio) de todos os seus direitos à Coroa a favor de sua filha D. Maria da Glória, sob duas condições: juramento da Carta e celebração do matrimónio de D. Maria com o infante D. Miguel, seu tio. O intento de D. Pedro consistia, simultaneamente, em dotar o país com uma Constituição moderada e conciliar os partidos extremos com os interesses da sua família. Em 31 de Junho de 1826 D. Maria, o Governo e a Corte juram a Carta, e, em Viena, em 4 de Outubro, D. Miguel faz idêntico juramento.
Dias depois, nesta cidade celebram-se os esponsais de D. Miguel com D. Maria (29 de Outubro de 1826), e no imediato, D. Pedro, por decreto de 3 de Junho de 1827, nomeia D. Miguel seu lugar-tenente, a fim de governar o Reino segundo a Carta. D. Miguel desembarcou em Belém em 22 de Fevereiro de 1828, aclamado logo com a vozearia: Viva D. Miguel I, rei absoluto!
Não obstante, quatro dias depois, solenemente, fazia este juramento: «Juro fidelidade ao Senhor D. Pedro IV e à Senhora D. Maria II, legítimos reis de Portugal, e entregar o governo do reino à Senhora D. Maria II, logo que ela chegue à maioridade. Juro igualmente manter a religião católica, apostólica, e a integridade do reino; observar e fazer observar a constituição política da nação portuguesa, e mais leis do reino, e prover ao bem geral da nação, quanto em mim couber.»
Entretanto, por decreto de 3 de Maio convocavam-se os antigos Três Estados do Reino, em cuja sessão de 11 de Julho de 1828 D. Miguel foi proclamado rei, declarando-se que se devia «reputar e declarar nulo o que o Senhor D. Pedro, na qualidade de Rei de Portugal, que não lhe competia, praticou e decretou, e nomeadamente a chamada Carta Constitucional da monarquia portuguesa, datada de 29 de Abril do dito ano de 1826».
Estadeia-se então a reação sangrenta e demagógica. D. Miguel «tinha por si os grandes, a soldadesca, a gentalha e os sacerdotes» (Passos Manuel), todos se associando para a mais nefanda perseguição política que jamais devastou a pátria portuguesa. Os instintos ancestrais, reprimidos por séculos de civilização, fizeram então a sua aparição tenebrosa, não faltando o veneno de algumas penas para os saudar e incitar. Sob a forma de oração, Frei Fortunato de São Boaventura imprimia na Contramina (n.º 28) esta miséria: «Nosso Senhor se digne engrossar depressa as vergônteas das nossas florestas para substituir os cacetes, que vão estalando nos lombos e nos miolos de quem nunca os teve para seguir a verdade»
José Agostinho de Macedo pedia na Besta esfolada (n.° 12), de Pedroiços, na cama, em cima de um joelho, 23 de Abril de 1829, o regabofe da forca:
«Há muito tempo que não vejo neles [os liberais] senão estas três coisas: 1.a) Judiar; 2.a) Roubar; 3.a) Fugir. Pelo meu voto, em quantos se apanhassem, eu acrescentaria mais uma coisa, que faziam: 4.a) Pernear.
Acaba um de pernear: em baixo.
Este em baixo, outro em cima.
E isto agora nestes dias de Maio que dão para tudo! Oh que safra! Deus a traga. Já que o ano ameaça escassez, dê-se ao povo um alegrão diário, com carne fresca.»
E o alegrão veio dias depois: em 7 de Maio eram enforcados na Praça Nova, no Porto, 10 liberais!
O padre Alvito Buela, na Defesa de Portugal, queria umas Vésperas Sicilianas, descendo à feroz monstruosidade de propor que se arrancassem os fetos do ventre das mulheres liberais para se extirpar a raça liberalista!
Para quê escrúpulo de consciência se, dizia-se, São Tomás justificava a morte dos liberais?
Olho vivo, Magistrados,
Haja pois severidade;
Matar dos tais um tirano
Não ofende a divindade.
escrevia o poetastro das Pateadas ao Cidadão liberal.
O miguelismo, porém, não foi só o reinado da perseguição e da ferocidade. É possível que, triunfante, evolucionasse num sentido vagamente constitucionalista; mas a esta hora, no fragor da luta, vivia apenas do pavor do «jacobismo» e de negações: negação da soberania nacional, negação da liberdade e dos direitos individuais, negação de toda a autonomia moral. Por isso o miguelismo foi a mais demagógica e sanhuda explosão de ódio que houve em Portugal.
E na verdade, o ódio era o único sentimento que esta ideologia podia dinamizar; no entanto, força é reconhecer que para os ilustrados as vigílias dos carcereiros e a destreza dos caceteiros e dos carrascos foram os instrumentos com que se procurou tornar efetiva uma conceção do homem e, por esta, do Estado.
Subjacente às diatribes de Frei Fortunato de São Boaventura e de José Agostinho de Macedo descobre-se a conceção de que o indivíduo, sem autonomia moral, é apenas um transitório lugar-onde. Era numa ordem exterior ao homem que se situavam os valores éticos, e consequentemente o Estado, como depositário e intérprete destes valores, exigia do indivíduo a adesão total. Perante as consciências dissidentes, ou, se se quiser, autónomas, o Estado arrogava-se o dever de as expulsar do seu grémio, quer dizer da própria alma da Nação. É difícil precisar o que então se considerava a alma da Nação; mas, se não erro, esta alma caracterizava-se pela fidelidade ao rei como expressão do patriotismo; pela prática dos ritos consuetudinários, especialmente religiosos, como sinónimo do civismo e da moral; e pelo horror do estrangeiro e das inovações como símbolo da pureza de ânimo e da fidelidade à tradição.
Para quê a liberdade e as garantias individuais, se a pessoa era apenas um lugar-onde, um instrumento do trono e do altar, intimamente associados?