2. As liberdades públicas e as garantias individuais

A liberdade tornava-se um escândalo e uma aberração, desdobrando-se para a política miguelista o extermínio de todas as suas formas, desde as mais exteriores às mais recônditas e incoercíveis da vida interior, num duplo dever: fazer obra de paz na terra e de glória no céu. Em contraste com esta conceção do Estado (Estado-polícia e Estado-inquisição), cujas raízes nacionais mergulham na ideologia da Contra-Reforma e à qual o Lamennais do Essai sur lindifférence en matière de religion deu o colorido da modernidade, erguia-se o liberalismo, inserindo na consciência individual e no acordo das vontades a origem da lei e dos valores éticos. A política miguelista, pela irredutibilidade feroz com que procedeu e pelas negações de que se inspirou, fez esquecer as reivindicações da soberania nacional para em seu lugar impor no primeiro plano das consciências o amor da liberdade. A liberdade apareceu então como a conquista essencial e basilar, transformando-se de sentimento vago em ideia nítida. Que importa, pensava-se, que o rei compartilhe do poder com a Nação, se a essência da vida civil reside na garantia dos direitos individuais e no seu exercício pacífico? Foi a vivacidade desta ideia, incomparavelmente mais precisa e fecunda que o sentimento romântico dos vintistas, a alma da emigração liberal. Não carecemos de lhe procurar a origem em publicistas nacionais ou estrangeiros: ela surgiu como a consequência lógica e necessária do despotismo miguelista. A sua organização técnica é uma coisa, a sua origem psicológica, outra; e colocando-nos neste ponto de vista da realidade concreta dos sentimentos, a forma imperativa como a ideia de liberdade surgiu nas consciências torna explicável a aceitação da Carta Constitucional de 1826 por todas as correntes ideológicas da emigração.

Vintistas, cesaristas, conservadores aristocratas, e os que tão somente aspiravam a um regime político compatível com a existência (Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, I) — todos coincidiam em ver na Carta a definição e garantia da liberdade. Notavam-se, como é óbvio, divergências doutrinais, de algumas das quais procedem as lutas políticas posteriores a 1834; mas a esta hora, durante o reinado ideal do liberalismo exilado e perseguido, a Carta era o ponto de conciliação, e dos vários títulos da Carta, sobretudo o das liberdades e garantias individuais.

Por isso assume uma significação geral o depoimento de Herculano, o mais puro e íntegro dos liberais cartistas:

«A questão da soberania popular não era precisamente o que preocupava mais os entendimentos, cultos, mas tardos, daquele tempo, e a democracia não apaixonava demasiado os ânimos, sobretudo os ânimos dos que haviam pelejado desde os Açores até Evoramonte as batalhas da liberdade, ou padecido na pátria durante cinco anos, sem o refrigério sequer de um gemido tolerado, as orgias do despotismo. Uns tinham visto de perto a face da democracia; tinham-na visto por entre a selva de oitenta mil baionetas que fora preciso quebrar-lhes nas mãos para a liberdade triunfar; tinham-na visto nas chapadas e pendores das colinas que circundam o Porto, até onde os olhos podem enxergar, alvejando-lhe nos ombros os cem mil embornais preparados para recolher os despojos da cidade da Virgem, da cidade maldita, rendida e posta a saque; haviam-na visto de machado e de cutelo, mutilando e assassinando prisioneiros inermes e agrilhoados. O liberalismo achara a catadura da democracia pouco simpática. Restava a soberania popular. Essa funcionara durante cinco anos e dera mostra de si... O amor do real e do evidente era um dos grandes defeitos dos homens de então. O cartismo argumentava: 'Que nos importa', dizia, 'donde veio a Carta? A questão é se ela consagra a liberdade humana e a cerca de garantias. É deficiente? É defeituosa? Esperemos que a razão pública, a torrente da opinião force os poderes do Estado a completá-la, a corrigi-la. A opinião ilustrada largamente preponderante é irresistível nos governos livres. O que não é irresistível é a opinião de alguns ou de muitos que benevolamente se encarregam de interpretar pelo voto próprio o voto comum, o voto dos que têm capacidade para o dar'.» (A Voz do Profeta, Introdução).

Herculano tinha razão, embora seja de observar a confusão da demagogia com a democracia e da soberania nacional com a violência da orgia miguelista. A liberdade, sempre uma conquista e jamais uma dádiva, seja a liberdade interior, seja a liberdade civil, era a suprema exigência moral e              política de então. Perante o império desta necessidade esbateram-se as divergências doutrinais, e, a despeito da mácula da sua origem, a Carta surgia como lábaro e esperança. A Carta dissimulava a soberania nacional, porém o título das liberdades e garantias individuais, tecnicamente mais perfeito que o da Constituição de 1822, como que atenuava pelo seu liberalismo e modernidade este vício. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos, tendo por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, era garantida pelo reconhecimento de quase todas as conquistas da civilização: não retroatividade da lei; liberdade de imprensa; inviolabilidade do domicílio e da correspondência; habeas corpus; igualdade perante a lei; proporcionalidade do imposto; abolição do confisco, infâmia, torturas; instrução pública primária e gratuita, etc.

Reconhecendo os direitos do pensar dissidente e das minorias a Carta contrariou o espírito de unificação purificadora, herança da Contra-Reforma, o qual tem sido o vício tenaz da nossa formação ética. «Sei que a esfera dos meus atos livres só tem por limites naturais a esfera dos atos livres dos outros, e por limites factícios restrições a que me convém submeter-me para a sociedade existir e para eu achar nela a garantia do exercício das minhas outras liberdades. Todas as instituições que não respeitarem estas ideias serão, pelo menos, viciosas», dizia Herculano a Oliveira Martins, a propósito dos artigos que este escrevera na República (1870) sobre a história do constitucionalismo, os quais foram o germe desse livro apaixonado e injusto, mais documento que história, chamado Portugal Contemporâneo. E não só as disse, senão quais as vindicou com sacrifício, recordando com incontestável autoridade ao então jovem crítico, saturado de Proudhon, que, «pelo menos, um pequeno serviço» devia a geração nova aos velhos liberais. «Foi o proporcionar-lhe, à custa de torrentes de sangue, nosso e alheio, a faculdade de evangelizarem o republicanismo e a democracia, sem perigo de lhes escapar a cabeça de cima dos ombros, ou sequer de lhes adejar em volta do leito do repouso o medo dos tiranos. Deviam desconfiar de que isto de sofrer resignado o desterro, as tempestades, a fome, os vermes, a nudez, os suplícios, a morte pela liberdade, direito eterno, fonte de todos os direitos, condição impreterível do homem que é homem, pressupõe um pouco mais de fé e de energia do que as necessárias para derramar tinta sobre o papel e proclamar como remédio dos males públicos umas coisas que aí andavam empoeiradas no fundo dos gavetões da história e que o liberalismo português lá deixou ficar, porque se persuadiu de que o progresso não consistia em remoçar velharias peregrinas, embrulhando-as em frases vistosas de novo vocabulário, nem em enxerir no seu símbolo doutrinas postas mais de uma vez à prova, e tão má conta haviam dado de si nos lugares e nos curtos períodos em que dominaram».

Entre o passado absolutista e o conjunto de reivindicações, que definiam o avanço político e social, a Carta ficou, no entanto, a meio caminho. Transição é o conceito que a define, ou «liberdade temperada», para empregar a expressão dos cartistas. Em tudo se revela: no poder moderador, como chave dos poderes do Estado; na câmara alta, hereditária, que não vitalícia ou eletiva, e com assento do episcopado; eleição indireta para a constituição da câmara baixa; consagração das honras nobiliárquicas; negação do direito de reunião de ensino e do direito de defesa e resistência. A despeito do seu liberalismo, que surpreendeu e irritou alguns gabinetes, este espírito de prudência, de justo-meio, de equilíbrio entre antagonismos inconciliáveis, feria-a de transitoriedade. A ideia do progresso indefinido, uma das grandes ideias dirigentes da época, que tudo impregnou, desde as conceções da natureza às conceções da sociedade, tornava-a precária, erguendo perante os espíritos o desiderato duma evolução mais adiantada. Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) por exemplo, um dos grandes nomes, se não o maior, do direito público moderno, inculcou largamente a noção, dominante sobretudo na segunda metade do século XIX, de que a monarquia é uma transação, e não um princípio autónomo e muito menos invariável. A República, a esta luz, surgia como a organização política mais coerente e lógica, como o termo necessário da evolução e do liberalismo que a Carta consagrava. Para além, porém, da expansão da ideia evolucionista, a Carta continha em si mesma, pelas suas restrições, o germe de divergências, que, tornadas irredutíveis, deram consistência à sensibilidade republicana. É que o espírito liberal de algumas normas transitou da teoria para a prática, da abstração para a realidade, dando origem a verdadeiros costumes que a maioria dos homens públicos respeitou.


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