3. Correntes ideológicas. Henriques Nogueira. Socialismo, federalismo e unitarismo

Dos capítulos anteriores desprende-se a conclusão de que o republicanismo português nasceu das denegações e estreitezas da política cartista, em condições tais que no-lo apresentam como o herdeiro do liberalismo. Se a monarquia representativa se tivesse mantido fiel ao espírito progressivo da Carta, se esta tivesse sido considerada como a expressão passageira de uma transação ou ponte para uma lei fundamental mais democrática e liberal, o partido republicano não teria tido condições de vida. Limitado às reivindicações platónicas de vozes isoladas e sem ressonância, não ecoaria na consciência pública. A emoção da liberdade cederia à emoção da propriedade e da justiça social, e como na quase totalidade das atuais monarquias democratizadas seria em torno do socialismo que se aglutinariam as consciências dissidentes. O problema político do século XIX, isto é, o respeito honrado da soberania nacional e a efetivação coerente e eficaz das liberdades públicas e das garantias individuais, não foi resolvido pela monarquia representativa. Daí a persistência tenaz desse problema e a constituição do partido republicano, quase exclusivamente político na sua ideologia, cuja vitalidade se afirmou nas horas incertas em que, durante a década 1870-1880, teve de lutar com a modernidade da orientação puramente socialista. Para além, porém, da herança liberal, ou, por outras palavras, das suas origens, o republicanismo cresceu e desenvolveu-se ao calor de uma ideologia autónoma, de tal sorte que a sua história é a história das vicissitudes e itinerários para a constituição doutrinal de um programa de aspirações nacionais.    

As primeiras manifestações do espírito republicano, no sentido concreto e popular de eliminação da coroa, até 1848, têm um carácter episódico, e por vezes anedótico.

Em 1829, por exemplo, o general Marinho, na Terceira, porventura depois da vitória de 11 de Agosto, alvitrou numa roda de emigrados «que se recobrassem os diferentes territórios ultramarinos, que na Europa, África, Ásia e Oceânia ainda atestam o grão poder do antigo Portugal, constituindo com eles a República dos Estados Unidos Portugueses Ultramarinos. Constituamo-nos, dizia, em nação marítima que já fomos, e Portugal (o continente), quando muito bem quiser descartar-se do seu tirano..., que se descarte, mas se preferir viver sob o azorrague e o cacete, que viva... e deixemo-lo à sua vontade».

Nestas conversas reconhece-se facilmente o protesto contra a tirania miguelista. A República era então uma visão delirante. Sete anos depois, porém, o seu nome surge já como conceção romântica da sociedade, senão como o termo lógico do liberalismo, e precisamente na pena daquele a quem Antero de Quental, no ardor da polémica Bom senso e bom gosto, chamara o Homero Constitucional: António Feliciano de Castilho. Em 1836, Castilho traduziu as Palavras de um Crente, de Lamennais, antecedendo-as de um prefácio, em cujas páginas, como notou Camilo, «ressaltam velhas locuções jacobinas, remodeladas pela primeira vez nesta língua lusitana, afeita há oito séculos a rojar-se em prosa e verso à ourela dos tronos». Castilho fez uma profissão de fé republicana. Era então um rapaz, e nessa hora de exaltação sentimental pela liberdade, essa profissão era fácil, já porque não tinha consequências pessoais, já porque o progressismo vago que a inspirava era um lugar-comum. No entanto, não deixa de ser singular toparmos com a confissão de que a «forma republicana, e se mais de uma imaginardes, dentre essas todas a mais libérrima, é a mais digna do homem, e que para ela foi a humana espécie predestinada... O destino das sociedades (se próximo ou remoto nem o sei eu nem, se o soubesse, o quisera dizer) outro não é senão a máxima liberdade em república. A ideia de república tão inteira vai contida na de soberania popular, como a de soberania popular na da razão, e a da razão na de Deus... Ora sendo, pois, esta a destinação terrestre das sociedades, pode-se e deve-se, mau grado aos que haveriam interesse em ao menos retardar o dia, premunir e aparelhar os povos para um estado que infalível os espera, influindo-os para que o venham a armar, porque dele gozem segundo a sabedoria». Castilho exprimia uma opinião, que era porventura a da maior parte dos liberais e foi entre nós, uma das ideias dirigentes da vida política no século XIX. Para além, porém, desta sugestão do ambiente, surpreende-se a influência de Lamennais, quer no colorido religioso da opinião, quer no conceito de povo. «Se a religião do Cristo fosse a religião da tirania, não bastariam todos os milagres imagináveis para refutar essa prova que nos ela daria de sua falsidade. Sim, disse Cristo que se desse a César o que é de César, mas disse ele que se desse a César o que não é de César? e demonstrado que seja que o que anda por mãos de César pertence ao povo, será o povo inibido de o reivindicar para se tornar ele próprio o César de si mesmo?»

Brotando da sugestão literária, o efémero republicanismo de Castilho tem a curiosidade da anedota: nem traduzia uma convicção firme e atuante, nem socialmente teve ressonância, porque, como vimos, a esta data, a reivindicação da soberania nacional era a bandeira da extrema esquerda monárquica. Carta doada e Constituição votada eram, em síntese, os grandes temas que agitavam a opinião política, dividida nos dois grandes partidos cartista e setembrista, cuja pugna se prolongou até 1851. O único desvio do magno dissídio nasceu da comoção suscitada pela Revolução Francesa de Fevereiro de 1848.

Quase todas as capitais europeias se agitaram mais ou menos revolucionariamente. Meternich é expulso de Viena; na Itália, tumultos em Milão, Livorno e Génova, revoluções em Palermo e Nápoles, e em Roma o Pontífice sentia-se impotente perante a vaga popular; na Dinamarca, revolução nacionalista, assim como na Hungria, sob o comando de Kossuth, e em Espanha, insurreições sufocadas ferozmente por Narvaez. A revolução, com matiz diverso, fora o signo do ano. E Portugal?

Esmagada a Patuleia, a reação cartista estava no seu auge. Teófilo Braga não receou afirmar que, «se a revolução de 1848 não nos viesse encontrar exaustos de energia moral por dois anos de combates e deceções em que o favoritismo monárquico nos lançara, ou se esse facto tivesse sucedido meses antes, após o golpe de Estado de 6 de Outubro de 1846, os chefes Setembristas não teriam ludibriado a resistência da Nação à rainha, e a República teria nesse ano entre nós a sua primeira experiência».

É possível que assim fosse; mas, trocando a utopia pela realidade, é incontestável que, embora o país não assistisse a tumultos, data de então a revolução republicana nos espíritos. Pela primeira vez se conspirou num sentido francamente republicano. O triunvirato José Estêvão Coelho de Magalhães, António de Oliveira Marreca e António Rodrigues Sampaio, ao qual se associaram políticos como Anselmo Braamcamp, Leonel Tavares, o general conde de Subserra, etc., procurou fomentar a revolução, pouco mais conseguindo que inquietar o governo e legar ao vasto repertório dos pronunciamentos e revoltas do século XIX este epíteto jocoso: a Conspiração das Hidras (Marquês de Fronteira, Memórias, IV). No entanto, 1848 marca historicamente o advento das aspirações republicanas. O jornalismo partidário, primeiro sintoma da opinião nova, fez a sua aparição com os semanários O Regenerador (16 de Março), sob a divisa Liberdade, Igualdade e Fraternidade, e A República (25 de Abril) com o lema Respublica circumit orbem. José Maria do Casal Ribeiro, no vibrante opúsculo Hoje não é ontem (Lisboa, 1848) saudou a modernidade da revolução; e os estudantes de Coimbra, num manifesto célebre (9 de Abril), anunciaram que algo de novo ia surgir na consciência pública: «Irmãos! Os estudantes da Universidade de Coimbra não podiam ficar silenciosos diante dos vossos feitos de estremado valor, do vosso amor pela liberdade e da vossa dedicação pela causa dos povos. Quebrastes os grilhões da França, preparastes a unidade da Itália e da Alemanha, emancipastes a Áustria, concorrestes para a emancipação da Polónia, apressastes a queda do absolutismo na Europa, apontastes aos povos a estrada do progresso, criastes-lhes um futuro glorioso, e nós de longe fazíamos votos pelo triunfo da santa causa que defendíeis, que é a nossa também, a da Península, a das nações, a de toda a humanidade. Está começada a regeneração do mundo (?), porque destes princípios data a santa cruzada dos povos contra os tiranos. Travou-se uma luta cruenta, e neste combate de vida ou de morte entre o absolutismo embuçado e a democracia descoberta, é a democracia que vai triunfando sobre os cadáveres dos nossos irmãos! Mas que importa esse sangue? É o selo de uma obra grandiosa: legaremos aos nossos filhos a Liberdade, que não herdámos de nossos pais. Sobre os nossos campos de batalha levanta-se um majestoso porvir, porque neles se proclama, entre os últimos arrancos da tirania vencida, Liberdade, Igualdade e Fraternidade para todos os homens. Irmãos! Por nossos avós nos foi legada essa nobre missão. À mocidade pertence o preparar os novos destinos das nações: Salvemo-las, pois, e Deus abençoará os nossos esforços. Também nós levantámos já o brado da emancipação; também nós empunhámos as armas em Março de 1844, em Maio e Outubro de 1846; também nós derramámos o nosso sangue no campo de batalha; também nós seríamos vencedores se a santa aliança dos reis não viesse ingerir-se na nossa causa, arrancar-nos as armas e atar o pobre Portugal ao poste dos vencidos para confinar a escarnecê-lo. Fomos sacrificados, irmãos, mas não o seremos mais. A santa aliança morreu, e nos nossos corações existe cada vez mais vivo o amor da Liberdade. Por ela correremos de novo às armas se for necessário, e ao empunhá-las bradaremos: Viva a Península! Viva a liberdade de todos os povos! Vivam os nossos irmãos de Paris, Itália, Berlim e Viena!»


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