3. Correntes ideológicas. Henriques Nogueira. Socialismo, federalismo e unitarismo

O manifesto da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864) e a literatura que ele suscitou puseram-no em contato com algumas ideias marxistas, que Antero aceitou, sem a consciência crítica do novo rumo que imprimiam ao socialismo, integrando-as, numa síntese um pouco confusa, com as ideias de Proudhon.

O revolucionarismo de Antero traduzia, no fundo, a aspiração do conservador de uma ordem social mais justa e equitativa. Nem revolução permanente, nem luta de classes, nem ditadura do proletariado, nem materialismo histórico: pura afirmação moral, tão pura que, perante a eticidade do seu socialismo, a fundamentação científica e as dissidências doutrinais e de técnica da ação mal se fazem ouvir. E, no entanto, Antero e os companheiros do Casino tinham a ilusão da objetividade científica, isto é, como disse (em Maio de 1871) Eça de Queirós, apresentavam «a revolução serenamente — como uma ciência a estudar. Não o fariam mais tranquilamente se se tratasse de anatomia» (As Farpas). Do grupo socializante, que rodeava Antero, atendia José Fontana e pela primeira vez anunciou em Portugal a moral do trabalho, a grande norma da ética do nosso século, talvez o menos proudhoniano e o mais informado das ideias de Marx e de Engels fosse o Sr. Jaime Batalha Reis. Num artigo publicado há anos no Diário de Notícias (6 de Junho de 1921), verdadeiro capítulo de memórias, confessou o único sobrevivente desta geração iconoclasta que na sua projetada conferência no Casino sobre O Socialismo discutiria «criticamente o proudhonismo de Antero de Quental e Oliveira Martins, que já então preparava a Teoria do Socialismo, publicada em 1872. A minha conferência no Casino teria sido assim, apenas, a exposição crítica dos diferentes sistemas socialistas, principalmente dos de Proudhon, Karl Marx e Engels».

E na verdade, Oliveira Martins (n. 1845), o historiador-filósofo da geração, era, como Antero, um discípulo do grande panfletário de 1848. Para ambos «o socialismo é a teoria da evolução», e é na obra de Proudhon, particularmente no De la justice dans la révolution et dans l'église (1858), que se filiam, como notou penetrantemente o Prof. Le Gentil, as ideias condutoras da Teoria do Socialismo: «a autonomia absoluta da consciência humana; a liberdade considerada como único agente organizador e dirigente da sociedade; o trabalho considerado como base única do valor; a extensão do crédito e da mutualidade; a assimilação dos patrões e dos operários pela fusão na classe nova dos trabalhadores iguais e livres. Proudhon fora o inspirador dos primeiros anos. A sua estrela empalidecerá no dia em que o seu discípulo português descobre Lassalle e Schãffle, e Laveleye. Antero, divergindo de Oliveira Martins em pontos secundários, sobretudo em relação ao significado e valor da Idade Média, justamente disse deste livro que a sua «conclusão é a minha»; porém, a despeito da comunidade de ideal, de juízos e de fundamentação, entre os dois amigos fraternos havia diferenças profundas. Para Antero, o socialismo valia, essencialmente, como solução moral; para Martins, de espírito realista, o socialismo continha, além dos ditames da justiça, a fórmula da reorganização nacional. Autodidata, «a interrupção forçada dos estudos e a entrada precoce para a vida prática foi-lhe decerto um benefício: favoreceu-lhe indubitavelmente a saúde do corpo e a do espírito, deu-lhe cedo da realidade uma noção direta e muito mais larga, mais verdadeira, mais profunda, que a dos outros escritores da sua época». Por isso, enquanto Antero atuava pelo pensamento e pela propaganda literária, Martins, nas minas de Santa Eufémia, perto de Córdova, exercia «sobre os operários uma ação educadora e filantrópica, que arrancou palavras de admiração aos menos benévolos dos seus críticos» (A. Sérgio), e pensando no concreto, quis ser o mentor da revolução e o reorganizador do Estado.

Ao seu espírito não bastava a justificação filosófica da Teoria do Socialismo (1872): impunha-se-lhe o «exame constitucional da sociedade portuguesa e sua reorganização pelo socialismo» Coerentemente, pois, a sua pena delineou no Portugal e o Socialismo, em 1873, o primeiro programa da revolução socialista, ou mais precisamente o programa das aspirações socialistas no ponto de vista português. Embora extenso, a transcrição impõe-se, para conhecimento e confronto das correntes políticas dissidentes durante a década 1870-1880:

 

SÚMULA LEGISLATIVA DA FUTURA REVOLUÇÃO PORTUGUESA

I. IDEIAS CONSTITUCIONAIS

Estado é a expressão real da coletividade; possui, portanto, uma existência positiva, não abstrata; — nem é a associação tradicional de classes hierarquizadas, a quem um princípio divino distribuiu autoridades, nem a justaposição mecânica de individualidades animais; da unidade metafísica do espírito humano adquire caracteres e funções, a que o direito chama Autoridade, e que se traduzem empiricamente:

pela propriedade de todos os valores naturais que não procedem do trabalho;

pelo exercício de todas as funções coletivas, económicas ou políticas;

pela sanção e garantia legal, dada aos contratos.

Indivíduo é a entidade natural, responsável e livre, cuja existência é condição necessária da formação do Estado. Unidade perfeita, material e moral, possui dentro da sociedade caracteres e funções, a que o direito público chama Liberdade, e que se traduzem empiricamente:

pelo livre exercício das suas forças materiais e morais, ou, por outra forma, pela liberdade de consciência, de imprensa, de associação, de trabalho, de reunião, de ensino, etc.;

que vem a traduzir-se, socialmente, na Propriedade dos frutos da sua atividade, e na Família pela transmissão integral dos mesmos;

e, politicamente, no sufrágio universal, que equipara a capacidade política à capacidade jurídica.

Estado e Indivíduo, realidades positivas e metafísicas, igualmente ambos servem conjuntamente a formar a sociedade. Da justa equação de direitos e deveres de ambos, depende a civilização.

Exteriormente, Estado e Indivíduo dizem-se Coleção e Unidade; e estes dois termos, opostos, quer no princípio de autoridade transcendente, quer no de justaposição naturalista, compreendem-se um ao outro e um pelo outro na Democracia socialista:

dando como fundamento à Autoridade o espírito humano, essencialmente uno, constante e idêntico em todos os homens;

e a razão individual como órgão e condição necessária da revelação desse espírito; constitucionalmente, pois, o contrato federal, como o molde logicamente adequado à solução.

II. REORGANIZAÇÃO SOCIAL

 A. Determinação do direito de propriedade.

Direito de propriedade é a faculdade que o homem tem de aplicar à conservação da sua existência, e ao melhoramento da sua condição, tudo quanto para esse fim legalmente adquiriu e de que, portanto, pode dispor livremente (Cód. Civil Port., P. III, tít. I, art. 2167.°).

Ora como nos casos da propriedade imóvel, rústica e urbana, e no da propriedade mineira e industrial, sucede que a apropriação individual é, além daquilo que a pessoa legitimamente adquiriu com uma intenção livre, daquilo que o conjunto das forças económicas e naturais criou fatalmente:


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Vamos corrigir esse problema