3. Correntes ideológicas. Henriques Nogueira. Socialismo, federalismo e unitarismo

A poesia torna-se eloquente, ou, melhor, a eloquência é uma forma de combate e de predicação. A matéria terrivelmente nova dos seus versos de apóstolo da revolução e de profeta, dos quais ressaltava um olímpico desprezo pelos temas amorosos, medievalistas e mourescos que faziam a modesta glória dos poetas de então, «pequeninas sensibilidades, pequeninamente contadas por pequeninas vozes», disse Eça de Queirós (1871), provocou um escândalo.

Antero tinha lançado um manifesto e um desafio, e um e outro foram aceites. A batalha tornou-se aguerrida, e durante mais de seis meses, os antigos e os modernos inundaram de panfletos Lisboa, Porto e Coimbra. Evocando mais tarde esta polémica famosa, conhecida pela Questão Coimbrã, Antero escreveu que «quando o fumo se dissipou, o que se viu mais claramente foi que havia em Portugal um grupo de 16 a 20 rapazes, que não queriam saber da Academia nem dos académicos, que já não eram católicos nem monárquicos, que falavam de Goethe e Hegel como os velhos tinham falado de Chateaubriand e de Cousin; e de Michelet e Proudhon, como os outros de Guizot e Bastiat; que citavam nomes bárbaros e ciências desconhecidas, como glótica, filologia, etc.; que inspiravam talvez pouca confiança pela petulância e irreverência, mas que inquestionavelmente tinham talento e estavam de boa-fé; e que, em suma, havia a esperar deles alguma coisa, quando assentassem».

Este «alguma coisa» foi simplesmente a renovação crítica, ideológica e política, porque é no abalo produzido pela «questão coimbrã» que se encontra a nascente do curso novo da nossa cultura na segunda metade do século XIX. O homem de ação, que se escondia sob o poeta e o discutidor loquaz, e se havia manifestado já retumbante em Coimbra, retoma então a dianteira.

Ao seu espírito íntegro não lhe bastava predicar em versos, por vezes ousadamente inovadores, a revolução. A sua consciência moral, tão pura, impôs-lhe a ação no terreno onde a luta social é mais dolorida, ordenando-lhe que confundisse a sua voz com a que sobe das fábricas e oficinas, e vivesse com as massas proletárias as mesmas fadigas e as mesmas esperanças.

O aristocrata de sangue e pelo talento faz-se proletário. Parte para Paris nos fins de 1866, trocando a carreira de escritor e o gozo de uma pequena fortuna pelo ofício de tipógrafo. Ao contrário de Michelet, que de tipógrafo se fez escritor, Antero, seu discípulo, de escritor e príncipe da sua geração faz-se tipógrafo, sem dúvida para poder dizer, como o Mestre na dedicatória do Peuple a Edgar Quinet: «Mereço, em mais de um sentido, o verdadeiro nome do homem moderno, o de trabalhador». O exemplo de Michelet afigura-se-nos a razão profunda da escolha deste ofício, no qual, no entanto, se não deve ver um teatral gesto imitativo. Socialista, humanitário, convicto do próximo rejuvenescimento da humanidade pelo proletariado, a força intacta, quis viver a injustiça do capitalismo atual e, porventura, saudar a aurora da revolução. «Eu por mim», escrevia na véspera da partida, «vou mais com o ânimo sossegado de quem cumpre um dever do que com o coração alegre de quem segue uma esperança».

A crua realidade e a confusão obscura dos pequenos interesses sem amanhã, em breve o advertiam do generoso sonho que sonhara, e cuja incitação emocional constitui uma das afirmações mais nobres do século passado. «Foi uma tentativa malograda, mas honrosa», confessou, «porque foi sincera; só eu sei por que esforços passei, para cumprir o que julgava então o meu dever, quantos sacrifícios! O resultado é este: mas não me queixo, porque tiro um outro moral, e esse grande, a estima de mim mesmo».

Regressa a Portugal, trazendo desta experiência singular e de uma coragem atual algumas desilusões, e com elas o conhecimento vívido do trabalho moderno, «forçado, pálido e dividido, desnaturado e injusto», e indiscutível autoridade moral.

Pouco depois, realiza nova aventura.

Empreende, um pouco por acaso, uma viagem à América do Norte. Não se lhe conhecem ao certo as razões, porém a hipótese de uma nova experiência social, tendo por objeto o exame da já então formidável organização capitalista, é muito verosímil. Seja como for, em fins de 1869 está em Lisboa, abrindo-se diante de si um novo campo de luta: a luta social e política. A revolução espanhola iniciada em 1868, os dias da Comuna, da qual o Dr. José Falcão, num escrito célebre, revelara o sentido de justiça social inconfundível e distinto da violência da ação, o advento da República em França e a propaganda e organização socialista, concorriam, por vias diversas, para provocar no espírito público sentimentos de melancólica incerteza sobre a estabilidade social, e, nos mais animosos, o espírito de eversão revolucionária. A juventude intelectual, que via em Antero o seu duca e maestro, não lamentava a prostração moral da «ordem». Pelo contrário, o exemplo estrangeiro encorajava-a à ação, e porque a alma destes revolucionários, ao mesmo tempo estetas, exigia ritmo e harmonia na destruição, associaram-se para «estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa», numa palavra, «ligar Portugal ao movimento moderno». Deste intento nasceram as Conferências Democráticas do Casino, nas quais foram formulados alguns problemas que conservam ainda atualidade viva. Antero, principal inspirador, falou sobre As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos.

Aceitando o juízo de Renan, no Avenir de la Science, de que a «história é a verdadeira filosofia do século XIX», Antero fez nesta conferência a interpretação filosófica da história peninsular depois da Renascença. Afirmava que a decadência era o resultado do concurso de três causas simultâneas: a transformação do catolicismo pelo Concílio de Trento, o estabelecimento do absolutismo real sobre as ruínas das antigas liberdades locais, e o espírito de conquista, no Pólo oposto ao espírito de trabalho. Pensamento, política e economia colaboraram, pois, solidariamente, e para suspender este longo processo de decadência, que remontava ao século XVI, urgia opor ao catolicismo a consciência livre, ao absolutismo a federação republicana e ao espírito de conquista a iniciativa no trabalho. Nunca se ouvira um requisitório tão violento contra a tradição, nem uma apologia tão raciocinada da revolução. A revolução era, com efeito, o alvo do seu pensamento, e para não deixar dúvidas no espírito dos auditores, terminara a exposição, que marca uma data na filosofia da história em Portugal, com a sentença famosa: «O Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno».

Toda a gente falava deste «eco da Comuna» Imperturbavelmente, porém, os sagitários do espírito novo prosseguiam a sua tarefa de vulneração crítica. Durante três semanas, sucessivamente, falaram Augusto Soromenho sobre A Literatura Portuguesa, Eça de Queirós sobre A Literatura Nova (O Realismo como Expressão Nova da Arte) e Adolfo Coelho sobre O Ensino, destacando-se para nós, hoje, a de Eça de Queirós, como índice da formação ideológica dos conferentes. Os protestos, renovados semanalmente, atraíram a atenção do Governo, o qual, perante o anúncio da conferência de Salomão Sáragga sobre Os Historiadores Críticos de Jesus, tomou a resolução primitiva e fácil de encerrar o Casino, proibindo as conferências. Com a estreiteza peculiar da mentalidade soi-disant realista e ordeira, na qual a reflexão se não eleva acima dos costumes e das necessidades imediatas, os governantes de então proibiram nas conferências o esforço pessoal de análise dos conceitos morais e políticos. Política sempre iníqua e contraproducente, porque, opondo o que foi ao que é, repudia o que devém e será, sacrificando a novidade incipiente ao molde exausto ou à saudade do passado. A excitação do espírito de oposição foi a consequência desta política, não só em Antero, como nos meios esclarecidos e sensíveis ao espírito da Carta e aos direitos do pensamento, bastando recordar a epístola famosa de Herculano a José Fontana.


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