3. Correntes ideológicas. Henriques Nogueira. Socialismo, federalismo e unitarismo

Antero, em particular, redobrou de atividade, descendo da posição ideológica à ação militante. Colabora em jornais como a República Federal (1870-1871) e o Pensamento Social (1871); tem entendimentos (1872?) com Mora, Morago e Lorenzo, emissários da secção espanhola da Internacional; organiza (1872) com José Fontana a secção portuguesa da Associação Internacional dos Trabalhadores, cujos princípios e fins explica no opúsculo O que é a Internacional (1871); concorre para que o Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas assuma (1872) uma feição nitidamente socialista; apresenta a sua candidatura como deputado socialista, numa palavra, torna-se «uma espécie de pequeno Lassalle» e conhece horas «de vã popularidade» (Carta Autobiográfica).

Esta ação intensa, múltipla, diversificada, era o desenvolvimento do espírito que ditara as Odes Modernas. Antero sentia exercer uma verdadeira ascendência moral na sociedade, e ambicionou revelar a unidade da vida e das suas ideias, expondo-a num Programa para os Trabalhos da Geração Nova, que reputava «um caso novo na literatura lusitana». Neste Programa, cujo original inutilizou e não chegou a concluir, trabalhou com ardor, estudando e metodizando as suas ideias, na convicção de introduzir, como escrevia a Lobo de Moura, «no espírito público o sentimento moderno e a mesma noção do espírito científico e filosófico».

Até 1874, o seu ânimo não conhece desfalecimentos, e possuído do indomato amore da sua missão e da universal solidariedade, todas as atitudes da sua vida espiritual e ativa se condensam em quatro versos do 3.° Soneto da série A Ideia:

Força é pois ir buscar outro caminho!

Lançar o arco de outra nova ponte

Por onde a alma passe — e um alto monte

Aonde se abra à luz o nosso ninho

 

«Lançar o arco de outra nova ponte» era o alvo da sua vida, o estímulo do seu pensamento e o móbil da sua ação; mas a partir deste ano de 1874 começa para ele uma vida nova, física e espiritualmente, da qual os Sonetos nos legaram a expressão imperitura e cujo sentido e essência se furtam ao nosso objetivo.  

Deste breve escorço biográfico desprende-se a existência de um ideário, de múltiplos aspetos, cuja estrutura política e social se define pelo socialismo, o republicanismo e o federalismo. Dois meses depois da revolução espanhola de 1868 Antero escreveu no opúsculo Portugal perante a Revolução de Espanha, que «a alta, a verdadeira missão do revolucionário, ou antes, a missão das gerações revolucionárias» consiste em «pôr de harmonia, como diz Proudhon, a política com a economia».

A revolução política, que fora a missão histórica da burguesia, estava consumada. Ditara-lhe este juízo a conceção evolutiva da humanidade, que ele aprendera durante os anos de Coimbra em entusiásticas leituras de Hegel, Michelet e de Proudhon, segundo a qual a história é uma sucessão dramática de períodos, nos quais a mensagem de cada classe «no momento oportuno, ou melhor no momento fatal, tem a sua razão de ser, e como tal, a sua legitimidade, o seu direito. O sacerdócio, a aristocracia, a burguesia, trouxeram cada qual à humanidade uma ideia nova, às sociedades uma nova organização: disseram uma palavra suprema — depois entraram na sombra». A burguesia «desorganizou o velho mundo aristocrático e monárquico, desvinculou e generalizou a propriedade, fundou a liberdade política, e inaugurou o período industrial da humanidade»; a sua obra, que fora a obra de uma classe, cujos interesses momentaneamente coincidiram com os da humanidade, estava, porém, conclusa, porque, esgotada «de pensamento e de vontade» e volvida em «aristocracia do dinheiro e da propriedade», o domínio desta «classe ávida e sem ideias não pode ser senão nocivo, letal, para o desenvolvimento revolucionário da sociedade». A evolução da humanidade impunha, portanto, um novo rumo, e o facto supremo dos meados do século residia aos seus olhos, na «entrada definitiva do povo na cena da história», ou, por outras palavras, uma nova mensagem humana cujo «fim é a destruição das classes, privilegiadas umas e outras sacrificadas, para sobre esse terreno nivelado assentar definitivamente o edifício da Igualdade e da Justiça».

É que a sociedade contemporânea, edificada sobre o liberalismo burguês, cujo advento foi historicamente necessário mas socialmente implica «a liberdade de morrer de fome», vive um grande combate, ao qual a Justiça tem de pôr termo: «dum lado o trabalho, do outro o capital; dum lado aqueles que, trabalhando, produzem; do outro lado aqueles que, sem esforço, e só porque monopolizaram os instrumentos do trabalho, terras, fábricas, dinheiro, vivem da pesada contribuição que impõem a quem, para produzir e viver, precisa daqueles instrumentos, daquele capital... É isto justo? É isto humano? Não, mil vezes não; e todavia é esta a cruel realidade! A concorrência e o salário põem o trabalho à mercê do capital; e este, sentindo-se forte, extrai do trabalhador tudo quanto ele produz, deixando-lhe apenas o suficiente para não morrer de fome, isto é, para poder continuar a trabalhar! Pois bem! o sentimento inato da Justiça diz ao povo que isto não pode ser; e a ciência económica demonstra-lhe que isto não deve ser. É nesta afirmação da consciência e nesta demonstração da ciência, que consiste o socialismo contemporâneo».

Pensamento do povo, «destinado a ser o princípio fecundante, o elemento gerador da nova evolução», o socialismo só pelo povo podia ser efetivado, porque «importando esse pensamento a negação das classes, nenhuma ousaria apresentá-lo sem se condenar ao suicídio». Como tudo o que começa, este pensamento é ainda indistinto. «Diz já claramente o que não quer: não diz bem ainda tudo quanto quer, e como quer»; mas a despeito desta imprecisão — o que aliás só prova que Antero não conhecia ao tempo O Capital de Carlos Marx, cuja primeira tradução francesa (1.° vol.) data de 1875 —, em seu juízo o socialismo «consiste na reivindicação do direito pleno de ser homem para todos os homens: um direito efetivo, que se exprima por instituições e factos, não por estéreis declarações legais: o direito de ser homem, completamente e para todos; e instituições sociais que a todos deem iguais condições para realizar esse direito. Daqui a negação das classes, a necessidade de tornar universal o capital e o crédito, tornando-os gratuitos, a substituição da solidariedade à concorrência e da propriedade coletiva ao regime do capital e do salário; o que importa a renovação, segundo este critério de uma justiça ampla e efetiva, de todas as nossas instituições e práticas industriais e económicas. Daqui ainda o trabalho considerado como base única de toda a propriedade, de todo o lucro, de toda a retribuição; e a extinção ou anulação de todos os monopólios, naturais ou sociais, que embaracem o desenvolvimento pleno do trabalho e o pleno direito dos trabalhadores. Daqui, finalmente, as questões sociais consideradas superiores às questões políticas, e o socialismo dado como bandeira ao movimento das classes operárias, nessa insurreição pacífica do proletariado, que é o facto capital do século XIX. É isto o que se encerra nesta palavra socialismo, e o que encerra a consciência popular, interpretada por uma ciência nova, cujo desenvolvimento tem sido paralelo com o acordar dessa consciência». A ciência nova era a economia política. Antero, porém, sobre a fundamentação científica, tinha vagas ideias gerais, colhidas umas, a maior parte, em Proudhon, e outras na literatura, mais ou menos jornalística, inspirada no marxismo. O seu socialismo era essencialmente moral, o seu intento, «acompanhar a manifestação da ideia nova que surge no seio das plebes», a sua divisa, «crítica e reforma das instituições, paz e tolerância aos homens»; por isso, quando descemos desta região moral ao terreno frio das ideias, topamos sempre com a subordinação do seu pensamento, particularmente à obra de Proudhon. Procedem de Proudhon as críticas da propriedade individual, do salariato e da concorrência; a noção de que só o trabalho é produtivo; a missão nova do povo e sobretudo a ideia, hostil à ditadura do proletariado a qual tem presidido ao socialismo português, de que o seu triunfo não representará a substituição da opressão de uma classe, a burguesia, por outra, o proletariado, mas pelo contrário a extensão fraterna das mesmas liberdades; e, além de outras ideias, histórico-filosóficas, a feição singular do seu anti-ultramontanismo (Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX contra a chamada opinião liberal, 1865) e a nova fundamentação, mais sociológica que histórica, do federalismo.


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