2. Com a razão nas mãos


                     I

E se tentássemos verificar se a razão serve ou não para compreender e orientar? A tentativa é fácil; ainda não paga imposto, cada um pode escolher a hora o e local mais propícios, antes ou depois do matinal café com leite. Sobre ser fácil, a tentativa talvez seja de efeitos musicais furando o zabumba que uns alemães freneticamente atacam — estas coisas são sempre made in Germany — e do qual soltam um ruído ensurdecedor, que afugenta a razão para dar cariz de gente ao instinto cego e muitas vezes certeiro do animal.             

Para que a experiência seja airosa removamos do campo os pedregulhos da imitação e da deturpação. São feios e nem sequer servem para brita. Em 1930, na História do Regime Republicano, acentuávamos já a oposição entre democracia e liberalismo no pensamento de Herculano, explicando-a historicamente e corrigindo, de passo, a confusão que o grande homem fizera entre democracia e demagogia miguelista; e quanto ao do liberalismo dos acusadores de Sócrates e democratismo do filósofo parece mal até que ele se desenhe confusamente no nosso horizonte. Montemos pois, a maquineta da razão e com as peças no sítio e bem oleada com pureza de ânimo vamos lá a ver se é capaz de não nos fazer cair no logro da pombinha e do milhafre, que, quando voam e sentem a resistência do ar, imaginam e creem que sem tal resistência voariam melhor. Sobre que vai operar a maquineta?

Pois seja sobre o tema da estação estival, ou a mândria do liberalismo à sombra da dormideira.

Em política, como em tudo o que é sério, sempre que pretendemos captar ideias claras e sólidas não temos mais remédio que atravessar a nado o pélago da metafísica. Descartes deu-nos o exemplo, e Karl Marx também, porque só se estrangulam umas ideias com as tenazes de outras ideias. Nestas coisas, os factos são como a arena dos circos: servem para neles se montar o trampolim e a corda bamba, mas quem salta e sobe a pulso é a mente do homem. O caso é que Descartes teve, como toda a gente, a sensação de possuir um corpo. Parecia-lhe que o seu corpo se movia sobre a terra, sofria a resistência do dintorno e via, ouvia, cheirava e tateava coisas que lhe estimulavam os sentidos? Pois sim, mas a sonhar tinha tudo isto e muito mais e porquê e como distinguir o sonho da vigília? Certo é que o atrevidíssimo inquiridor da clareza das ideias só se convenceu que havia no mundo que nos cerca e os seus pés pisavam terra firme, e não a poeirada do logro ou da fantasmagoria, quando demonstrou a existência de Deus. Assim mesmo: a única garantia da existência pensável do mundo é Deus, e porque Deus existe e não nos quer ludibriar, Descartes conquistou a certeza de que quando vemos com os olhos despertos e fitos não estamos afinal a sonhar.

Já o leitor vê que na região da política se passa alguma coisa de semelhante, porque também temos de depurar o sonho no crisol da vigília, ou, se prefere as imagens desportivas, de nadar no areal da fantasia desbocada para a margem viçosa do pensamento coerente e consistente.

A nado, e só a nado, sem boia nem comitiva, se opera tão difícil travessia e já que não há outro recurso desembaracemo-nos do casaco, das calças e das botas e atiremo-nos de mergulho para o pélago, procurando pôr pé na umbrosa margem com o ritmo normal da respiração. Ninguém nos agradece que lá cheguemos exaustos e esbaforidos e até os íncolas das desejadas terras do Preste João podem sorrir de piedade ou mofa.

Ao surdir do mergulho, que tem o nadador na cabecinha ousada?

Apenas a consciência de si próprio e a desconfiança de que à sua volta as águas escondem correntes traiçoeiras ou o tubarão o espreita com a voraz dentuça. Portanto, uma única certeza, a da sua consciência; uma única força, a da confiança em si, e uma infinidade de desconfianças que lhe invadem todos os poros da desencardida pele. A sua cabecita é o centro de tudo o que o rodeia; o seu ânimo, a disciplina de toda a realidade traidora, e na pupila vigilante e suspicaz convergem e se refletem os movimentos capciosos das águas e as imagens atraentes da terra firme.

É que só há uma única coisa do mundo que nos seja óbvia e imediatamente presente — a consciência. Tudo o mais é problemático. Pode ser que seja, e pode ser que não seja, e cumpre necessariamente a cada um, por si e só por si, decidir se é ou não é. Há outras consciências além da minha? Não contesto, embora a prova seja dificílima, e dado que existam posso eu devassá-las? Vejo coisas que estão acolá e são independentes de mim, subsistindo mesmo que eu morra?

Sem dúvida; mas essas coisas só se articulam na minha mente e se eu não tivesse olhos conformados duma maneira normal, de nada serviriam as descrições que outrem me fizesse da caneta com que escrevo. O desventurado cego de nascença é como os papagaios: palra e o seu palrar soa a rachado, nem sempre entendendo o que está a dizer, porque jamais o tato dos contornos supre a imagem visual. A ironia cruel que se dissimula na convicção daquele cego que descrevia a cor vermelha com termos de som, imaginando-a um cortejo de tambores ruidosos!

Estas gotinhas de metafísica, que tepidamente saltaram do pélago para as pálpebras do atrevido nadador, contêm, como na imagem famosa do poeta, um mundo de insuspeitadas coisas, no qual se arvora, logo à entrada, galhardo sobre todos os ventos, o pavilhão do liberalismo.

É que só para o homem de carne e osso, e no homem no reconditório da consciência, tem ser e valor a Verdade, ou o conhecimento científico, a Beleza, ou a expressão pela arte, o Bem, ou a conduta moral, a Justiça, ou o império social do direito, e a Técnica ou a vitória instrumental sobre a natureza. Nem para Deus, nem para a Natureza, estas coisas têm qualquer espécie de importância: para Deus, porque por definição, as possui absolutamente, e para a Natureza, a grande estúpida cornuda porque tanto se lhe dá que o homem afirme que é o Sol que gira em torno da Terra ou a Terra em torno do Sol, chame seu ao rendimento do trabalho pessoal e faça da economia individual uma virtude, como decrete que tudo pertence a um comilão, que quanto mais envelhece mais insaciável se torna, chamado Estado, e vitupere a garantia contra o amanhã incerto como monstruosidade moral burguesa.

Disse, se bem recordo Nietzsche, que o homem é o único animal que protesta, e o dito sobre ser verdadeiro tem como as verdades primeiras consequências de incalculável volume. Se é a consciência de cada um que diz às coisas o sim ou o não, se o seu dizer é incoercível e sem apelação decisivo, tudo o que constitui o Universo — coisas, fenómenos, ideias e valores — só vale para a personalidade espiritual do homem e existe subordinado aos valores supremos da pessoa, os valores morais. Quero dizer, Ciência, Arte, Direito e Técnica, são meios, cujo fim supremo é a dignificação e senhorio do homem, de mim e dos outros, do eu e do tu, porque quem dialoga, tuteando ou invocando outrem, implicitamente designa a existência por tu ou por vós daquilo que em linguagem de solilóquio chama eu.

Se sobre todas as coisas reina a dignidade da consciência humana, qualquer ideário político, qualquer arquitetura do Estado, que a esqueça, esmague ou remova para o fundo do cenário é intrinsecamente falsa e moralmente pecaminosa.

E agora, leitor, atravessado o pélago, avistada a Ursa maior e sabido o Norte, toca para o reino do Preste João, à busca de informes da Índia.


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