Coloquemo-nos em Sírio ou, se o leitor é romântico, na Lua. Para o caso tanto importa a estrela brilhante como o satélite de palor melancólico, porque se trata apenas de montar o telescópio num sítio distante e alto.
É a melhor maneira de ver as coisas. A distância dá-nos perspetiva e às vezes até como nos bailados e coros das óperas, espetaculosidade.
Visto de longe, o Estado parece a águia bicéfala. Tem um só corpo, o território e os indivíduos que nele habitam, e sobre o corpo, gigantesco ou liliputiano, dir-se-ia que assentam duas cabeças.
Donde brota a ilusão?
Pois do Estado ser simultaneamente uma técnica administrativa de serviços coletivos e de ordem pública, e um sistema vigente de normas jurídicas e de objetivos morais tendenciais.
Como técnica, o Estado é um dispositivo de meios ou instrumentos, rudimentares e grosseiros como machado de pedra nas sociedades primitivas, complicados e expeditos nas sociedades civilizadas. Do soba, régulo ou chefe do rebanho primitivo ou da velha civilização que se deixou cafrealizar à maravilhosa construção do Estado no século XIX a distância é enorme, incomparavelmente maior do que a que separa o lento carro de bois do vertiginoso avião; mas assim como entre o carro de bois e o avião há de comum o servirem de meio de transporte, assim também entre o soba e o governo da Inglaterra, da Suíça ou de qualquer invenção utópica de bem-intencionado reformador, encontramos o denominador comum de sempre servirem de instrumento de coordenação e autoridade.
Instrumento de administração e de ordem pública, sujeito e objeto do direito, eis o que dá ao Estado a ilusória parecença com a águia bicéfala, e ilusória porque há entre as duas feições a mesma relação que mantêm mutuamente o tema e a desinência, o substantivo e o adjetivo. O substantivo é o sistema de normas jurídicas e a tendência para certo reino ideal; o adjetivo ou a desinência, a orgânica e mecânica estatal. Coisas que podem isolar-se e até inverter-se, passando o adjetivo a ocupar o lugar do substantivo, o instrumento a espatifar a cadeira curul do Direito; por isso há Estados com instrumental expedito ao serviço de ideais infra-humanos, e Estados de direito e de fins ideais, servidos com instrumental lento e chiador como os carros de bois.
Sétimo Severo distinguiu cruamente as coisas quando, na agonia, recomendou aos filhos que se «mantivessem unidos, pagassem à tropa e desprezassem o resto»; vamos nós hoje, volvidos tantos séculos, cometer o feio pecado de confundir a essência e o fim do Estado com o instrumental que ele utiliza num dado momento histórico?
Porque, por exemplo, a organização novecentista do Parlamento teve deficiências e a sua marcha foi às vezes tortuosa, vamos despachá-lo à pitonisa da Pressa, a pitosga e alucinada conselheira, para que o deponha no altar do demónio do Arbítrio?
Deixemos em suspenso a resposta, e depois de ver de longe a silhueta do Estado escutemos o seu falar.
O Estado só sabe falar no imperativo e gagueja sempre que conjuga os verbos noutro modo. A sua linguagem, portanto, é uma linguagem autoritária, sem as doçuras do optativo, e cadenciada em artigos de lei e de regulamentos, exige que todos a ouçam, respeitem e cumpram. Ai dos que a esquecem!
O menos que lhes sucede é a advertência do polícia, e na advertência do modesto agente, tão simpático e persuasivo quando a urbe lhe não rouba a simplicidade rural, cada um, afinal, aprende que o Estado carece necessariamente de indivíduos sobre quem mande. Pagar a décima, entrar nas sortes, dar e ouvir vivas aos ministros são até para muitos as formas visíveis do Estado, cuja presença, aliás, todos sentimos, quanto mais não seja nas algibeiras, e aplaudimos com reconhecimento quando nos garante os direitos e faz distinguir sem sofismas o meu do teu.
Pelo porte e pelo falar, o Estado é um ser soberano: impõe ordens e exige acatamento; mas então, parafraseando a pergunta bíblica, o Estado existe para os indivíduos, ou os indivíduos para o Estado, ou há uma relação tal que um não existe sem o outro?
Resposta dificílima e laboriosa, da qual tudo o mais depende, e por ser de árduo acesso há que circundá-la em espiral, como a estrada da montanha.
As nossas atitudes e réplicas, quando puras e desinteressadas, dependem em regra de ideias muito gerais e tendências virtuais, de que nem sempre somos claramente conscientes. Não se aprendem nos livros; insinua-as lentamente a experiência da vida e a reflexão espontânea e segrega-as a totalidade dos nossos conhecimentos no embate com os baldões quotidianos. Daqui já o leitor vê porque os homens dão respostas diversas a factos idênticos e se assestar o binóculo logo avista a agudeza do quarentão sobre a miopia do jovem entusiasta e perdulário de palavras e energias, as únicas coisas de que pode dispor para glória sua e delicioso viático do ancião.
Consciência individual, suprema realidade, Estado que impõe leis e ordens — eis os conhecimentos positivos até agora colhidos pela rede de informes da Índia; mas não haverá nesta dualidade um abismo intransponível? Como pode o Estado mandar se eu no foro íntimo disser que não ao seu mandamento, ou, por outras palavras, onde estão as fronteiras da consciência individual e da lei, por natureza coativa e geral?
A pergunta é, infelizmente, recentíssima e nem sequer atingiu ainda a adolescência.
Oh se ela fosse do tipo das que o homem formula há tantos séculos sobre a maneira de se deslocar com rapidez no espaço, extrair da terra o máximo proveito e dominar com comodidade os rigores das estações!
Nasceu vai para dois mil anos e foi Jesus quem a depositou sobre a face do planeta e a resolveu no entendimento dos homens de pura vontade.
O grego, tão inteligente e bem-falante, que pela primeira vez descobriu coisas maravilhosas e insuspeitadas, como a Razão, a Ciência, a Justiça, e se consumiu na faina ensaiadora de formas diversas de governo da cidade, ao chegar às fronteiras da Consciência — território recentíssimo, torno a insistir — deteve-se perante as muralhas que a isolam. Sócrates atreveu-se a escalá-las; pagou com a vida a inaudita ousadia. É que o grego não compreendeu nem admitiu que o Indivíduo pudesse habitar uma zona moral independente do Estado; por isso encheu o vazio das teologias oficiais, o qual lhe permitiu o incomparável desporto da razão que explica o conhecer, com o querer ambicioso dos detentores da cidade. Dissentir da massa, dos oligarcas ou dos tiranos, no fundo sempre tirania. Só não custava a vida quando havia tempo ou ânimo para emigrar e o herege não era cínico, isto é, vadio como os cães.
Veio Jesus e disse que se desse a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus e desde então foi possível a generosa atitude de espírito e de coração, donde brota o liberalismo.
Desde o grande dia alguns homens souberam que a consciência tem um domínio autónomo e inviolável — as crenças, os pensamentos, os sentimentos, que nenhum poder tem o direito de devassar, e que o Estado, ou a Lei, tem também um domínio próprio, a ação exterior. Consciência e ação, interioridade espiritual e exterioridade material, surgem como os dois hemisférios do mundo humano, que quase se compenetram numa zona intermédia e indecisa, a da expressão do pensamento pela palavra e pela escrita, na qual não se sabe ao certo onde acaba o pensamento e começa o ato. Por isso a Lei de imprensa é a coisa mais difícil da técnica jurídica, e é por isso ainda que os sobreviventes da primitividade, para quem evidentemente há coisas difíceis, retrotraem o curso da História e resolvem o problema, negando-o.