2. Com a razão nas mãos

De tão subtil conceção, que atribui a suprema realidade precisamente ao que se não vê nem apalpa, brota uma explicação hierárquica das relações entre indivíduo e sociedade, e consequentemente uma política de hierarquia. Do indivíduo à família, da família à profissão, da profissão à classe, da classe à função social, da função social ao governo nacional, do governo nacional ao governo ecuménico (respublica christiana), há o encadeamento de estados sucessivamente mais gerais, e portanto mais reais, que dão ao indivíduo ser e identificação.

Daqui resulta que a teocracia, isto é, o governo de Deus, o sumo ser e Pai de todos, foi um ideal harmónico e elevado, tal como nos nossos dias o governo da Sociedade das Nações, se as nações quisessem organizar-se em sociedades e se considerassem solidariamente membros de um único ser, a Humanidade. Seria dos ditames da Humanidade que brotariam os direitos e deveres de cada nação, porque a coerência do sistema exige que seja do superior que os grupos sociais e os indivíduos recebam a força e o valimento.

A sociedade feudal, na Idade Média, e a organização eclesiástica da Igreja católica, nos nossos dias, exprimem mais ou menos esta conceção, da qual, no século XV, o Infante D. Pedro nos legou, no Tratado da Virtuosa Bem feitoria, uma lúcida exposição.

Não é necessário um grande esforço de acomodação visual para ver que os recentíssimos sistemas corporativistas e sindicalistas do Estado mergulham as suas raízes nesta conceção do indivíduo e da hierarquia social. Uma vez mais se conclui que, nestas coisas, não há grandes progressos. Sob a capa do último figurino escondem-se os andrajos remendados dum serrobeco tecido manualmente.

Estes ideais têm sua beleza e não se lhes pode negar sedução e amplitude filosófica; padecem, porém, duma enfermidade congénita. Supõem que o homem é um gramofone, e o homem não é um gramofone, nem a vida um monólogo que se deixe encerrar num único disco. Se o destino do homem consistisse em reproduzir o disco gravado pela nação, como totalidade estatal, ou pelos grupos sociais, hierárquica e organicamente escalonados, então, sim, o indivíduo seria a sombra duma aparência ilusória. A verdade palmar é que só o homem de carne e osso é capaz de gravar o disco, e gravar o disco consiste, para cada um, agora e sempre, em fazer escolher, decidir e conviver conscientemente no trágico banquete da vida e do espírito.

Quanto mais não fosse por exclusão, o liberalismo é a única política de base filosófica generosa, criadora e fecunda, e não apenas por exclusão de partes, mas por fundamentos próprios.

Já vê o leitor que não há política sem metafísica, o que não quer dizer que os metafísicos sejam políticos e muito menos governem. Isso nunca, e jamais pode perdoar-se a Platão ter defendido ideia tão esquisita, o Governo dos filósofos seria uma calamidade maior que a praga dos gafanhotos e mais insuportável que a insolência dos janízaros, porque o ofício dos filósofos é serem protestantes e tudo revocar em dúvida, e só se governa com os afirmantes que saibam falar no imperativo. Não se vive, porém, sem metafísica, e ninguém carece tanto do licoroso néctar como os governantes, e visto que só a metafísica nos salva, pois viva e venha a nós o reino da metafísica!

IV

Todos temos que fazer uma urgentíssima operação: extrair a catarata do progresso dos ideais.

Sem a restauradora intervenção somos como o cego da bandurra, levados pela mão do mocinho e cantando cantigas ao futuro enganador e sovina.

A catarata consiste numa névoa que começa por esfumar as coisas e por fim nos priva completamente da visão. Com o progresso acontece o mesmo. Hoje não, amanhã sim é a divisa do progressista, e visto que o amanhã será necessariamente melhor do que o dia de hoje, viva o amanhã e sirva de colírio para as irritações do presente a convicção de que os nossos bisnetos não padecerão os nossos ardores e pruridos.

Esta é a catarata da volumosa e esmarrida maioria. Ceguinha, canta cantigas ao futuro e recusa ao presente o seu óbolo vital. Não vê, nem vive o seu tempo, o único que se pode viver; espera, confia e entrega-o com desnudo abandono ao porvir. Pede a esmola aos vindouros e pedir esmola é gesto digno do Homem?

Há no íntimo da conceção popular do progresso um erro maior que o Himalaia e mais gélido que o pico da magna montanha. Toda a vida moderna, com seus esplendores e misérias, suas insatisfações, conquistas e câmbios, brota da fecunda e omnívora crença, que há um século devora e enaltece a consciência humana. Por dádiva do progresso, dominamos hoje em dia a natureza, que jaz a nosso pés como o tigre domesticado, e não é necessário olho de lince para descobrir no horizonte longínquo a era incipiente em que a vida social se modele sobre a técnica e os resultados materiais do progresso.

Os seus frutos são visíveis e tangíveis, mas nem todos os podem colher. Dar-lhes fruição universal é atualmente o lema dos partidos sedicentes avançados, dos míopes do Estado-técnico e a grande empresa de todos os políticos, seja qual for a sua marca. Já lá vai o tempo em que uns homens eram progressistas e outros regeneradores. Hoje todos têm que ser progressistas se quiserem ser ouvidos; por isso o reacionário se apropria do reportório verbal do comunista e o comunista reproduz a gesta e os gestos do reacionário e uns e outros estão satisfeitíssimos e convictos de que nos salvam com o progresso.

Pensou já o leitor na hesitação que lhe desfibra o entusiasmo quando quer regalar a família com o aparelho de TSF? Como a sereia do farol, uma voz interior adverte-o do perigo em que incorre a sua carteira, porque, pelo incessante progresso, o aparelho de hoje pode ser depois de amanhã um fóssil de museu. Quantos não compram o aparelho à espera da «última palavra»? A «última palavra» nunca chega, nem teoricamente pode chegar enquanto o homem for o homo sapiens e tiver a presunção de considerar cientificamente a natureza, e adeus ao regalo da família e às noites incomparáveis da paz caseira.

E, no entanto, a alegria da família, a paz e contentamento dos corações nada têm que ver com o progresso. São íncolas de outro mundo, diverso do mundo onde se fazem os aparelhos de TSF. Na choupana desguarnecida pode-se viver mais alegremente que no palácio das mil e uma comodidades, e tê-lo compreendido e expresso com alacre e estética ironia é uma das glórias perenes de Eça de Queirós.

Fazer viver no provisório, marcar as coisas com o ferrete da interinidade, roubar ao homem o sentimento da eternidade e permutar a ideia do que é pela do que está — eis a cinzenta névoa que o progresso deposita no nosso cristalino.

O progresso científico e técnico é um facto indiscutível. Discuti-lo, isto é, torná-lo problemático, é ato de loucura; porém sobre o facto do progresso ergue-se a ideia de progresso, e examinar a extensão da ideia de progresso não é loucura, mas problema vital, pelas consequências morais e políticas que desentranha de seu pejado ventre.

O que está parado não progride; logo é essencial à ideia de progresso o movimento. Não é indiferente, porém, qualquer movimento, porque só se diz progressivo o movimento que avança, isto é, marcha para diante. Marchar para a frente é o distintivo do progresso, e o que é marchar para a frente? Aproximar-se da meta, disse um penetrante filósofo, e assim quando vemos um barco no mar diremos que progride à medida que se aproxima do porto de destino, mas se o timoneiro lhe troca o rumo, diremos que retrocede. Portanto, o movimento, a mudança, a alteração, não definem o progresso, embora lhe sejam pertinentes e essenciais, porque, indiferentemente se prestam à marcha para diante ou para trás. Daqui se conclui que a definição mais simples de progresso é a de um movimento que tende para uma meta, isto é, um fim a atingir. Mas o fim o que é?


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